Ateliê de leituras lacanianas 

 

Um rinoceronte na cristaleira e a presença do analista: Lacan em seu Seminário 1[1]

 

 
Danielle Lemes. Rumores.

 

 1. Notas introdutórias: 

É sempre em função da questão o que fazemos quando fazemos análise? que esse comentário de Freud foi trazido aqui por mim. [...]. Partirei, pois, da atualidade da técnica, do que se diz, se escreve e se pratica quanto à técnica analítica[2]. 

Queremos [...] levar o leitor a uma consequência em que ele precise colocar algo de si[3]. 

A proposta do Ateliê de Leituras Lacanianas surge em 2024 com o desejo de um espaço coletivo para leituras atentas ao ensino de Lacan, a começar pelo Seminário 1. A ideia inicial partiu da sensação de que passávamos rápido demais por esse Seminário. Mesmo sabendo que a leitura de Lacan precisa de algo de si, um espaço compartilhado com diferentes colegas poderia proporcionar uma leitura um pouco menos solitária.

A escolha pelo Seminário 1 não se deu necessariamente pela expectativa de tomá-lo como um suposto início da produção ou da clínica de Lacan, como muitos pensavam ao chegarem ao Ateliê. Foi importante situarmos historicamente o trabalho de Lacan, o qual iniciou pelo menos duas décadas antes do Seminário 1 e tendo como marca sua tese de doutorado em 1932, ainda na Psiquiatria, acerca das psicoses[4].

O Seminário 1 - Os escritos técnicos de Freud (1953 - 1954) carrega a marca de inaugurar a enumeração de Seminários. No entanto, Elza Macedo[5] sinaliza que iniciativas rumo aos Seminários começaram em 1951 com a discussão do “Caso Dora” de Freud. Desse tempo, temos um registro no texto “Intervenção sobre a transferência”, que está nos Escritos[6]. Entre 1952 e 1953, Lacan se dedicou a discussões sobre os casos freudianos dos Homens dos Ratos e dos Lobos. Um escrito lacaniano contemporâneo a esse período é “O mito individual do neurótico”[7]. Esses encontros foram realizados na casa de Lacan para um pequeno grupo de pessoas. O Seminário 1 passa a ser ministrado no Hospital Sainte Anne, iniciando o registro por estenografia[8].

Quanto à dinâmica própria do Ateliê, houve presença importante de pessoas no início de sua prática clínica. Chegaram também participantes oriundos de um desejo de saber da experiência de suas análises pessoais. Algumas pessoas, já em outros pontos do percurso como analistas, apontam para o interesse de poder se deter no estudo em um outro tempo “mais calmo”, abrindo o Seminário 1 para além do modo como ele é geralmente tomado - apenas pelo capítulo da “Tópica do Imaginário” e dos casos Dick e Robert. Tivemos a inscrição e circulação de cerca de 50 diferentes pessoas em nossos encontros, tendo nesse momento de 15 a 20 participantes.

O Ateliê de Leituras Lacanianas aposta que o ensino lacaniano não possui um caráter estritamente cronológico ou por etapas. Portanto, há muito da atualidade do Seminário 1. Chegamos ao final de 2024 tendo lido cerca da metade do Seminário 1 e é a partir dessa leitura que falaremos aqui.

 
2. 
Disciplina do comentário ou Sobre uma metodologia de trabalho:

 Essa forma de ensino é uma recusa de todo o sistema. [...] O pensamento de Freud é o mais perpetuamente aberto à revisão. É um erro reduzi-lo a palavras gastas[9].

 Àqueles que se encontram na posição de seguir Freud, coloca-se a questão de como as vias que herdamos foram adotadas, recompreendidas, repensadas. Além disso, não podemos fazer de outra forma senão juntar o que traremos sob o título de uma crítica, uma crítica da técnica analítica[10].

 Ao nos determos à leitura do Seminário 1, fizemos um duplo movimento de retorno à transmissão de Lacan de mãos dadas com a leitura de Freud. Logo de início, percebemos que precisamos ficar com os olhos atentos à complexidade de uma disputa política e epistêmica que se dá de modo efervescente em torno dos modos de ler Freud da época.

É nesse ponto que tomamos a referência da noção de “disciplina do comentário”: Jésus Santiago[11] cita justamente o Seminário 1 para apresentar essa proposta. Compreendemos que o próprio trabalho do Ateliê se efetivou em ato como “exercício de leitura metódica e sistemática”[12] do Seminário 1, buscando seus elementos históricos, políticos e teórico-clínicos.

Como consequência das disputas em torno da psicanálise da época, temos questões éticas e clínicas importantes. Lacan sinaliza, de saída, um mal-estar no campo. Por exemplo, ele aborda a imagem cômica, em alguns momentos, dos analistas agindo como “rinocerontes na cristaleira”[13] com as manifestações de resistências de seus pacientes, criticando o uso de termos policialescos que atribuíam “má fé” aos mais resistentes.

Assim, o percurso do Ateliê neste ano nos convidou à leitura de diversos trechos e/ou textos freudianos[14] e lacanianos[15], considerados pelos participantes como centrais para a formação. Também trabalhamos mais detalhadamente um capítulo de 1930 de Melanie Klein[16], acerca do caso Dick.

Buscamos sustentar a potencialidade das diferentes leituras que emergiram, assim como os pontos opacos e os muitos ecos. Quiçá, desejamos atenuar um empuxo à inibição muito comum na leitura de Lacan. Também apostamos nos efeitos que a dinâmica de conversação no coletivo pôde proporcionar, descobrindo pontos novos de leitura, novas entonações e interpretações.

Elza Macedo aponta que, tendo em vista a dimensão da fala nos Seminários, podemos tomar uma posição de analisante de Lacan. Essa também é a posição de orientação das coordenadoras e participantes. Assim, fazer viva a letra de Lacan e sustentar a atualidade do Seminário 1 nos convoca a ir além de uma leitura rígida ou que se proponha a extrair um devaneio de verdade de seu texto. Nossos encontros buscaram sustentar vias para o que pudesse advir da leitura, seus efeitos da associação livre e as reverberações a partir da escuta dos pares.

Foi possível recolher das conversações o papel na formação do analista e a importância de uma desidealização do que seria a leitura de Lacan. Interpretações dos participantes mudavam e se relançavam, sendo possível perceber uma abertura ao equívoco e à escuta, traços cujas marcas vêm desde Freud.

Dentre os pontos que ficam do percurso de trabalho para além do Seminário 1, tiveram destaque algumas discussões dentre os participantes: psicanálise e ciência; a Escola de Lacan e seu funcionamento; o dispositivo do passe; e, por fim, os efeitos de formação com exemplos de vinhetas clínicas dentre os participantes.

3. Perspectiva do Conceito: A presença do analista

Se a palavra é tomada como ela deve ser, como ponto central de perspectiva, é numa relação a três, e não numa relação a dois, que se deve formular, na sua completude, a experiência analítica[17]. 

É aí que está a questão - a atividade do analista. Como age ele? O que é que conta no que faz?[18] 

Na primeira parte do Seminário, Lacan se detém a uma série de críticas às leituras de alguns pós-freudianos acerca da experiência do que seria uma análise até adentrar em sua Tópica do Imaginário e a questão do Menino Lobo. Em sua crítica, Lacan retoma diferentes pontos da transmissão freudiana para sinalizar equívocos nos rumos da psicanálise nos anos 1950. Aqui, poderíamos trazer alguns conceitos que Lacan aborda, mas escolhemos um conceito central a partir de nossas discussões no Ateliê, ou seja, o que nos agitou mais e nos colocou a dizer.

Pontuando a importância de uma ética na escuta das resistências, Lacan sinaliza uma discordância com a interpretação pós-freudiana de encará-las apenas como mecanismos de defesa catalogados. Lacan chega a citar casos em que o analisante estaria colocado sob suspeita e recomenda: “não futuque muito nisso”[19]. Defende um manejo da transferência cuidadoso no sentido de reafirmar a escuta flutuante, buscando deslocar a análise do imaginário do ego do analista e de um ideal de adaptação à realidade. Traz, em especial, a presença do analista como questão central. O que faz um analista com sua presença? 

No momento em que ele parece pronto para formular alguma coisa de mais autêntico, de mais quente do que jamais pôde atingir até então, o sujeito, em certos casos, se interrompe e emite um enunciado que pode ser este: Eu realizo de repente o fato de sua presença[20]. 

Nas nossas discussões no Ateliê, a partir do conceito de presença do analista, decantamos em especial deslizamentos possíveis desse significante: a atividade, a posição, o lugar, o trabalho do analista a partir do embaraço de Lacan com a proposta de que um praticante da psicanálise se situe a partir do seu ego. 

É isso mesmo que há de grave. Porque nos permitimos efetivamente - como a análise nos revelou que nós nos permitimos as coisas, sem saber - fazer intervir o nosso ego na análise. Já que se sustenta que se trata de obter uma readaptação do paciente ao real, seria preciso pelo menos saber se é o ego do analista que dá a medida do real[21]. 

Daqui, pode-se extrair as consequências éticas que Lacan postula em seu texto de 1958, “A direção do tratamento e os princípios do seu poder”. Ali, quatro anos após o Seminário 1, Lacan questiona o imbróglio em torno dos fascínios do ser do analista, seus sentimentos e a redução do analisante a uma posição de objeto e aos perigos de transformar a psicanálise em uma reeducação.

Nesse texto, Lacan retoma a proposição que aparece no Seminário 1 acerca da presença do analista. Afirma também a presença como algo que o praticante “dá”, diferente de seu ego que seria uma projeção imaginária de um ideal de eu: 

Observa-se que o analista, no entanto, dá sua presença, mas creio que a princípio ela é apenas a implicação de sua escuta, e que esta é apenas a condição da fala. Aliás, por que exigiria a técnica que ele a fizesse tão discreta, se assim não fosse? É mais tarde que sua presença se faz notar.

Além do mais o sentimento mais agudo de sua presença está ligado a um momento em que o sujeito só pode se calar, isto é, em que recua até mesmo ante a sombra da demanda[22]. 

Clotilde Leguil[23] retoma a importância desse conceito, abordando a presença do analista na práxis psicanalítica no século XXI. Na década de 1950, essa presença aparece como algo que interrompe o discurso do sujeito, como algo opaco, difícil de definir, com marca de mistério. Essa proposição acerca da presença estará presente, enfim, em seminários posteriores, como no Seminário 11, no qual Lacan postula a presença do analista como constitutiva do inconsciente. No Seminário 19, associa a presença com uma confrontação de corpos.

Portanto, desde o Seminário 1, Lacan retoma conceitos freudianos e mexe nas estruturas da relação analista-analisante a partir de uma noção complexa de presença.
 

4. Lógica do Tratamento

Acredito não trair o pensamento de Freud - basta saber lê-lo, está escrito preto no branco - ao dizer que só a perspectiva da história e do reconhecimento permite definir o que conta para o sujeito.

Gostaria, para aqueles que não estão acostumados com essa dialética que já desenvolvi abundantemente, de dar para vocês um certo número de noções de base. É preciso estar sempre no nível do alfabeto[24].

A partir do exposto, podemos pensar a lógica do tratamento como a implicação do conceito “presença do analista” com elementos da clínica. Entendemos que determinadas formas de ler os conceitos constroem formas distintas de praticar a psicanálise, envolvendo prática, ética e o fazer de um psicanalista. Ou seja, o que sustenta uma análise? Há algo da presença que a sustenta?

No Seminário 1, especialmente em sua primeira parte (“O momento da resistência”), temos muitos elementos de base da clínica psicanalítica, especialmente de ordem ética, que nos indica sua atualidade. Lacan aborda a análise como “experiência do particular”[25], traçando seus primeiros contatos com a linguística e a antropologia estrutural. Em nosso Ateliê, percebemos o início do percurso de Lacan com o significante, ainda não nomeado dessa forma, sinalizando a atenção necessária ao discurso do analisante enquanto a análise aparece como um texto. Lacan diz que “a palavra se põe a correr em folheto manuscrito impresso”[26] ao tomarmos o discurso do paciente como realidade[27].

O fato de precisarmos atentar ao texto no dizer de um analisante, seja da descrição de um sonho, na afirmação de uma frase fantasmática ou em algo que o sujeito diz sem querer dizer, sinaliza pontos que ainda hoje reverberam em nossas clínicas. No lugar de um “rinoceronte na cristaleira”, Lacan sugere a prudência, pois sinaliza “o perigo de um acosso do sujeito pelas intervenções do analista”[28]. Ele diz que a história narrada não é um simples passado: “qual é o valor do que é reconstruído do passado do sujeito? [...] O que conta é o que ele disso reconstrói”[29].

Em termos de direção de tratamento, a leitura coletiva do Seminário também evocou discussões calorosas no Ateliê sobre como seriam feitas as interpretações das resistências a partir da presença do analista. E se um paciente não quiser mais vir à análise? Percebemos, também, a importância de construir noções sobre a singularidade de cada caso e sobre o que não é uma análise, abordando elementos da diferença entre análise e psicoterapia.

Nesse sentido, Lacan afirma no início do Seminário 1: “O ideal da análise não é o domínio completo de si, a ausência de paixão. É tornar o sujeito capaz de sustentar o diálogo analítico, de não falar nem muito cedo, nem muito tarde”[30]. Por fim, encerramos com mais perguntas do que respostas.


[1] Texto construído a partir da reunião de um grupo de trabalho que envolveu a coordenação do Ateliê e participantes interessados nessa decantação. Com isso, buscamos recolher impressões e experiências sobre o Ateliê entre vários. Apresentado no Colóquio Seminário dos Ateliês de Leitura do ICPOL: Pulsão e presença do analista”, tendo como convidada e comentadora Maria do Carmo Dias Batista (AME - EBP/AMP), em 30/11/2024. Esse grupo contou com a participação de Maria Luiza Rovaris Cidade e Mariana Queiroz (coordenadoras), Carla Avellar Lopes, Mateus Benvenutti e Tiago Santos. Agradecemos a presença da e dos colegas e suas contribuições valiosas.

[2] LACAN, J. O Seminário - livro 1: os escritos técnicos de Freud. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. Tradução Betty Milan. p. 19. Grifo do autor.

[3] LACAN, J. Abertura desta coletânea. Em: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p.11.

[4] Lacan defendeu sua tese em 1932 com o título: “Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade”.

[5]  MACEDO, Elza. Notas para a leitura do Seminário 1 de Jacques Lacan. 2023. Disponível em: <https://ipla.com.br/conteudos/artigos/notas-para-a-leitura-do-seminario-1-de-jacques-lacan/>.

[6]  LACAN, J. Intervenção sobre a transferência. Em: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 214-225.

[7] LACAN, J. O mito individual do neurótico ou Poesia e verdade na neurose. Em: LACAN, J. O mito individual do neurótico. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 09-44.

[8] Ibidem. p. 09-44.

[9] Seminário 1, p. 9.

[10] Ibidem, p. 26.

[11] Texto de inspiração para a construção deste Colóquio-Seminário. Referência: ALVARENGA, E.; SANTIAGO, J.; VIEIRA, M. A. Pontuações da Comissão Científica. In: GORSKI, G. G.; FUENTES, M. J. (Orgs.). Leituras do Seminário … ou pior de Jacques Lacan. Salvador: Escola Brasileira de Psicanálise, 2015. p. 21-28.

[12] Seminário 1, p. 25.

[13] “Certamente, não basta que tenhamos uma certa concepção do ego para que nosso ego entre em jogo como um rinoceronte na cristaleira da nossa relação com o paciente” na página 29 do Seminário 1.

[14] Especialmente os textos “Estudos sobre histeria” (1893-1895), ’”A interpretação dos sonhos” (1900), “O caso Dora” (1905) “A dinâmica da transferência” (1912), “A repressão” (1915), “A negação” (1925) e  “Construções em análise” (1937).

[15]  “Função e campo da fala e da linguagem” (1953), que é contemporâneo ao Seminário 1; “A direção do tratamento e o princípio do seu poder” (1958); “Comentário falado sobre a Verneinung de Freud” por Jean Hyppolite (1954), que está nos Escritos; e, em nosso momento atual do Ateliê, “O estádio do Espelho” (1949).

[16] KLEIN, M. A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do ego.  In: KLEIN, M. Amor, culpa e reparação. Rio de Janeiro: Imago, 1996.  p. 251-264.

[17]Seminário 1, p.21.

[18]Ibidem, p. 47.

[19] Resposta a um comentário do Sr. Z na página 40 do Seminário 1.

[20] Ibidem, p. 59.

[21] Ibidem, p. 29.

[22] LACAN, J. A direção do tratamento e os princípios do seu poder. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 624.

[23] LEGUIL, C. O analista como testemunha da perda. Boletim Punctum - Boletim do XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, 2022. Disponível em: <https://encontrobrasileiroebp2022.com.br/presenca-do-psicanalista-como-testemunha-da-perda/#:~:text=Lacan%20faz%20do%20analista%20a,alguma%20chance%20de%20ganh%C3%A1%2Dla.>. 

[24] Seminário 1, p. 52.

[25] Ibidem, p. 34

[26] Ibidem.

[27] Ibidem, p. 35.

[28] Ibidem 43.

[29] Ibidem, p. 23.

[30] Ibidem, p. 12.