Reunião do dia 06/08/1988[1]
Silvia Emília Spósito
In memorian
Foi analista praticante, membro da EBP/AMP
Danielle Lemes. Sem título.
O que é o instinto? Que características tem o instinto? Não é aprendido culturalmente, então o que seria? Podemos dizer que o instinto é da ordem do biológico e quais características tem. Pensem em um instinto. Está ligado à sobrevivência. A que tende o instinto? Satisfação de uma necessidade biológica. E qual seria o objeto do instinto?
Poderíamos dizer que o instinto tem uma ordem biológica. O biológico é da ordem do necessário: tem que ser satisfeito para sobreviver — por exemplo, comer. Isso quer dizer que o objeto do instinto é um objeto fixo: para matar a fome, eu me alimento; para matar a sede, eu bebo água. O objeto é um objeto fixo que independe do sujeito. Independe da cultura. A gente poderia dizer que nem sempre que temos sede bebemos água; poderíamos beber coca-cola ou cerveja. Mas o limite para matar a sede é a água. Isto quer dizer que essa característica do instinto como biológico é da ordem do necessário. Nos colocaria na situação de que o encontro com a coca-cola ou a cerveja é um objeto cultural.
E então, como seria a pulsão? Estamos falando do objeto da pulsão, essa “coisinha de nada”. Tem a ver com outro tipo de satisfação: a satisfação sexual. E como é o objeto da pulsão? Não é fixo. E mais: o que Freud vai falar é que o objeto da pulsão é indiferente — tanto faz. Para cada um de nós, é um objeto que tem uma história. Outra característica: o objeto da pulsão, do ponto de vista psíquico, não é da ordem do necessário, e sim da ordem da possibilidade. Isto quer dizer: quando alguém nasce, podemos falar, do ponto de vista biológico, que etapas essa criança vai ter; aos 4 meses segura a cabeça, aos 6 meses se senta, ao 1 ano começa a caminhar e, se existe algum desvio dessa etapa, a gente se preocupa (“tem 1 ano e ainda não caminha, o que será que aconteceu?”). Essa é a ordem do biológico, quer dizer que sabemos que vai acontecer; podemos seguir as etapas e, no momento em que a criança vai nascer, já sabemos que ela vai fazer isso.
Na ordem do psíquico, na ordem da pulsão, do objeto da pulsão, não sabemos. Ninguém sabe. E mais: do ponto de vista teórico, quando alguém nasce, tem todas as possibilidades, qualquer uma. Inclusive do ponto de vista clínico, ninguém pode saber, nem fazendo um “psico-diagnóstico” perfeito da mãe, do pai, da família, o que essa criança vai desencadear: se vai ser psicótica, neurótica, perversa, do que vai gostar, que profissão vai ter.
Falamos que, do ponto de vista psíquico, a história que Freud vai falar das etapas — o percurso da pulsão — não é da ordem do biológico. Por isso, pensar as etapas como evolutivas é um erro. Pensar que a etapa oral depois será anal e que a etapa anal significa um aperfeiçoamento, uma melhora — significa uma etapa posterior de amadurecimento —, ou que a etapa fálica, genital, é um indivíduo maduro, é um equívoco. Porque a pulsão não é da ordem do biológico.
É preciso um “suporte”. Este é um conceito de Freud, num artigo que dei para vocês lerem sobre o conceito de suporte. O biológico é um suporte; e é preciso pensar que havia também limitações para o controle dos esfíncteres, precisa seguir as etapas, tudo bem. Estamos supondo um biológico com suas leis de amadurecimento que servem como suporte; mas servir como suporte não quer dizer que determina. Para poder controlar, precisa de um sistema neurológico que funcione bem. Esse é o conceito de “suporte”, mas não determina. Se não, não entenderíamos como uma criança pode ser encoprética. Como entender um sintoma em uma criança quando nasce um irmão e ela começa a fazer xixi e coco de novo na cama, na calça? Como entender?
A mudança de uma etapa a outra tem a ver com a mudança na demanda da mãe. A demanda é de fora, a significação é de fora. Em algum lugar, Lacan se pergunta falando disso — surgiu a ideia do instinto como um impulso vital. Eles perguntam: quando alguém nasce, o que quer da vida? Nada. O que quer um bebezinho recém-nascido? Nada. Ele não quer ser alimentado. É da ordem do necessário: se não tiver alguém para dar a teta cada vez que ele chora, ele vai morrer. Mas ele não quer ser alimentado, ele não sabe, não existe um sujeito. O aparecimento do sujeito precisa de um outro movimento, e este outro movimento vem de fora.
O que ele quer? Não quer nada. Pensem nos sintomas de hospitalismo, onde crianças morrem. Nas experiências de Spitz, a criança tem comida, tem cuidado, e morre de fome. Isto está mostrando que precisa de um outro ato que o tire desse “ser nada”, desse só biológico. Ele não quer nada, ele só sente um vazio, sente dor e chora, e alguma coisa vem e o acalma. Isto é da ordem do que poderíamos ir tentando reproduzir, o que pode acontecer com uma criança. Então, vejam: da ordem do biológico, se não tem alguém que tome conta, a criança morre, mas não porque ela “queira”. É um outro ato psíquico que vem de fora.
As etapas não são evolutivas porque estamos falando de uma outra ordem, de algo que não é biológico, e a gente poderia fazer a imagem de que o psíquico é como um desfiladeiro entre o biológico e o cultural, certo? Mas esse desfiladeiro entre o biológico e o cultural — essa relação entre biológico e cultural, essa marca da significação que vem de fora — é da ordem de uma marca, é da ordem de uma catástrofe. O encontro do biológico com o cultural é da ordem da catástrofe. Porque isso quer dizer que não é um encontro na ordem do natural, na medida em que o cultural introduz um desequilíbrio do biológico. Catastrófico porque não é um encontro sem conflito.
O que é uma marca no biológico? Eu falei que esse encontro é catastrófico. Existe uma consequência? A neurose é uma consequência? É uma linguagem... Mas como é essa marca? O que são zonas erógenas? O que é a pulsão? Veja, quando falamos que o psíquico é um desfiladeiro entre o biológico e o cultural, entre o biológico e o psíquico existe uma relação de fronteira. Quando eu falava que o biológico serve de suporte, mas não é determinante... Se não é determinante o biológico, o que será determinante? O cultural.
Esse encontro é catastrófico na medida em que a pulsão — e vocês devem ter lido na definição de Freud, que é muito precisa —, a pulsão é um conceito-limite entre o psíquico e o corporal. Ele vai falar que não é biológico, mas também não é psíquico. Se você pensa numa construção, aqui nesta fronteira do biológico e do psíquico (entre o biológico que serve de suporte e o psíquico), a pulsão cria como que uma ponte. Se insere no biológico, mas não é biológico. Estou tentando criar uma imagem para ver se vocês entendem. Estou tentando demonstrar que existe um conceito de fronteira, mas existe uma fronteira Argentina/Brasil que é contínua; alguém colocou uma linha onde começa um e termina outro. Não existe descontinuidade, mas existe um conceito de fronteira, onde existe uma fresta, existe um buraco. Não é um encontro natural, é nesse sentido que é catastrófico.
A pulsão cria, podemos dizer assim, uma ponte entre o biológico e o psíquico. Não é biológico, mas o biológico serve de suporte; mas também não é psíquico. Então, onde “pulsa” a pulsão? No corpo. Em que corpo estamos falando? Não é o corpo biológico, é o corpo erógeno. Por isso eu falava que essa marca do cultural no biológico, esse encontro catastrófico, é da ordem de uma montagem. É uma montagem em que o corpo biológico serve como suporte, mas é uma montagem que se constrói em cima desse corpo biológico e que não tem uma finalidade. É uma montagem. E tem, por exemplo, um aparelho com uma saída de gás que vai movimentar uma máquina, e a máquina terá uma pena que fará cócegas no umbigo de uma mulher. É dessa ordem de montagem. Não tem finalidade; podemos inverter. Não segue um percurso com uma finalidade que seja eterna. Por isso não é biológico.
Quando eu falo que não tem finalidade, a gente poderia dizer: “Como a psicanálise então lida?” A psicanálise lida reconstruindo. Porque sabemos que esse encontro é uma catástrofe, e nessa catástrofe ficam marcas. Podemos reconstruir daqui para trás. Nesse percurso, podemos saber qual é o sentido, mas um sentido que se reconstrói. Se a gente fala de finalidade, e essa é toda uma discussão filosófica: muitos vão colocar a finalidade no início — então vão falar “Deus colocou o homem para...”, e esse “para” pode ser variado. Então essa seria a finalidade e vamos indo; a história é a história do aperfeiçoamento do homem. Outra teoria filosófica vai colocar a finalidade no final, e eu vou perguntar: se a gente fala de uma finalidade, só pode ser uma finalidade que esteja fora de nós. E isso já não é nossa problemática analítica. Aí a gente coloca Deus como todas as formas de manifestações ou da natureza, a natureza como finalidade, entendem?
Do ponto de vista psíquico, essa montagem não tem nenhuma finalidade. O que isso quer dizer? Que consequências isso tem para nós? Que as etapas não são evolutivas e que não há nenhuma finalidade de “chegar a tal lugar”. A finalidade seria chegar a uma sexualidade heterossexual, genital, adulta, “madura”. E por que não podemos falar, do ponto de vista psicanalítico, que há essa finalidade? Porque eu posso afirmar que a finalidade não é chegar a uma genitalidade adulta, heterossexual ou sei lá o quê. Se não, não entenderíamos a perversão, ou só poderíamos entender a perversão como um desvio dessa finalidade “normal, pré-determinada”. E eu sei que, no momento em que nasce uma criança, vai ter que passar pela fase oral, anal e a genital como a última, a adulta. Mas a realidade não é isso; se fosse, eu só poderia explicar a perversão como um problema degenerativo, como a psiquiatria do século passado, ou pensar que é um desvio. Mas isso é se colocar no final da corrente: todos os que não chegaram aqui, “desviaram” do caminho, entendem? No qual estaríamos tirando fora da teoria. Existe a perversão como um desvio de um caminho normal. A cultura permite a marginalidade.
Acontece que, neste artigo que vocês leram, o primeiro artigo de Freud, ele não é muito afirmativo; deixa sempre uma porta aberta: “talvez a biologia um dia encontre uma causa biológica...”. Eu acho que esse tipo de afirmação assinala como Freud era cauteloso com algo que estava pesquisando, mas ao mesmo tempo assinala os impasses das coisas que ia teorizando, onde ele deixa aberta uma possibilidade — “aqui não sei muito bem...”.
Agora, acontece que ele vai falar isso, e de verdade, neste artigo, ele vai falar da perversão como um desvio diferente da genitalidade, mas também vai dizer que a pulsão não tem objeto. E mais ainda: que o objeto da pulsão é indiferente. Desmente, assim, uma finalidade. Se ele está colocando neste artigo que a gente estudou que as etapas são evolutivas, o objeto é pré-determinado. Na leitura das etapas como evolutivas, que a gente estuda, não só as etapas são contínuas — uma vem depois da outra —, mas sua definição é biológica. A passagem de uma a outra é biológica. O objeto da etapa oral está pré-determinado. Todos “sabemos” qual seria o objeto normal, supomos, nessa leitura, qual é o objeto normal. Mas isso é contraditório com a definição de pulsão, e não é por acaso que se traduz “pulsão” por instinto quando Freud fala de pulsão e se dá ao trabalho de definir, no início, o que é instinto e o que é pulsão. E continua falando de instinto. É muito significativo, isso quer dizer como Freud continuou sendo lido com a cabeça que ele mesmo foi criticando, apesar das críticas e das mudanças que ele vai introduzindo teoricamente na concepção do psíquico. Ele continua sendo lido com a cabeça anterior. Isso é o que mostra. Talvez na história não houvesse outra possibilidade. Eu acho que só agora é que se está começando a pensar o que Lacan falou: “Vamos estudar de novo o que Freud disse?” Acho interessante por esse lado. Ele se dá o trabalho de definir o que é pulsão e o que é instinto como coisas diferentes. Como podemos falar de “instinto sexual”? O que ele tirou de um lado retornou: isso poderíamos falar como o retorno do reprimido.
O objeto é indiferente, e Freud vai assinalar — não sei se vocês lembram — um momento em que o instinto e a pulsão se separam. Qual é esse momento? Quando uma criança nasce, vem com um reflexo que serve para se alimentar, serve para sobreviver, mas ele vai dizer que existe um momento hipotético que a gente reconstrói em que a criança utiliza o reflexo de sucção não mais para se alimentar, mas para chupar o próprio dedo ou para chupar tudo que aparece na sua boca: brinquedo, paninho, o lenço, o dedo da mãe... O mundo todo passa a ser chupado, qualquer coisa que apareça. Então, existe um momento hipotético em que aparece a pulsão com a satisfação de quê? A satisfação da boca. E o que é esse objeto? É o brinquedinho? É um objeto “enganoso”, porque não é pelo brinquedinho que ela sente prazer na boca. A pulsão contorna — essa seria outra característica da pulsão: ela está sempre em busca de um prazer de zona, um prazer que tem a ver com um lugar no corpo, nessa montagem que se cria sobre o corpo biológico. Freud vai falar que a imagem seria: a pulsão oral, nesse caso, é como uma boca que se beija a si mesma. Então, a pulsão sai da boca — e isso vale para qualquer pulsão — e volta, contorna o objeto. E a ilusão é que é pelo objeto. E a ilusão do “sair” também. Quando falamos de ilusão na aula passada, é a ilusão de que “eu sou alguém por ele, pelo objeto; se eu perco esse objeto, não sou mais ninguém”. Mas, na realidade, só contornou.
A pulsão tem esse percurso: sai e volta, é o mesmo que se fecha. E quando falamos de objeto? O que quer dizer quando uma criança, no início, não quer chupeta? O que estou querendo dimensionar com isso — de rechaçar a chupeta e não querer mamar? Veja que aparece esse objeto com uma significação, por que esse objeto tem uma significação? Isso quer dizer que a significação vem de fora. Como objeto cultural, por isso a significação sempre está fora. E começa a história estando fora. Quando eu falava, estou pensando numa perversão, quando Freud introduz: “bom, se o beijo for uma parte do ato preparatório para uma relação genital, aí tudo bem. Agora, se se destaca... na camisa, na blusa... e essa blusa se destaca do resto, esse objeto não só...” — é um perverso. Para todos nós, esse objeto se destaca, o objeto me chama, e quando visto essa blusa me sinto bonita, me sinto bem, e com outra não me sinto do mesmo jeito, entendem?
A significação vem de fora, onde está? A mãe, que supomos ser um sujeito adulto que suporta a cultura — cada um de nós suporta a cultura. A significação vem de fora. E mais: a criança faz coisas, brinca, e brinca até que aprende, como um processo. Na realidade, não é dessa ordem clara de uma aprendizagem consciente do saber, mas a criança sabe falar antes de conhecer regras gramaticais. Ela entende antes de falar. Sabe falar antes de “saber” as regras, enfim. O sujeito aparece num momento determinado de sua história, aparece num lugar que já está designado, aparece ali. Ali ele aparece, ele tem que se reconhecer nesse lugar. Entendem? Ele precisa se reconhecer nesse lugar. Por quê? Porque ele já está significado, já tem um lugar antes mesmo de nascer. Desde o momento em que o pai e a mãe se pensaram como desejando ter um filho. Antes de casar-se, muitas vezes, no momento em que o pai se define como pai, no momento em que deseja ter um filho.
Do ponto de vista psicanalítico, não se define paternidade ou maternidade do ponto de vista biológico. O que define uma função materna ou paterna é o desejo. O exemplo de Salomão que queria cortar a criança em dois: uma mulher sequestra uma criança e as duas brigam. O que vamos fazer? Cortar a criança e cada uma fica com a metade. Então, a que é a mãe fala: “tudo bem, quero salvar meu filho, pode ficar com ela”. A que não é a mãe fala: “corta o menino pela metade”. Isto falaria de uma diferença em psicanálise: uma seria uma mãe pulsional e a outra seria mãe enquanto desejo. Qual seria a diferença? As duas querem, mas o querer é diferente. A diferença é que, na mãe pulsional, o filho não é alguém separado, não é um sujeito; tanto faz, se é metade ou 1/4 de criança... É um objeto enquanto objeto autoerótico, enquanto objeto que não está separado dela. Na outra, ela prefere separar o filho, que ele viva separado de mim, com outra mãe, mas viva; ou seja, pode renunciar a esse objeto. Supomos que isso simbolize que ela não veja o filho como prolongamento dela.
Qualquer criança, nesse não-querer-nada do início, nessa realidade, poderíamos dizer que ela é um objeto. Ele é um objeto de um desejo de um outro. De um outro que, do ponto de vista da criança, é a origem de tudo. Mas também como um outro que está em um lugar completo, que tem tudo. Do ponto de vista da mãe, esta tem sua própria história, na qual esse filho tem uma significação específica, especial para essa mãe.
[1]No ano de 1988, Silvia Emília Espósito (in memorian) vinha periodicamente de São Paulo para transmitir a psicanálise a um grupo de interessados nesse estudo. Os encontros aconteciam em uma sala do Palácio Cruz e Souza, em Florianópolis. Era o início de uma longa jornada no seu vínculo com a cidade escolhida por ela para viver e trabalhar, sempre em prol da causa analítica. Seu trabalho ao longo dos anos marcou a formação de uma geração de analistas e foi decisivo para a construção da Escola Brasileira de Psicanálise em Santa Catarina. E com a nova geografia da EBP, contribuiu também para a fundação da Seção Sul. Foi sócia fundadora do ICPOL-SC.