Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Cultura[1] 

Ressonâncias e... ruídos de um trabalho que segue

 
Danielle Lemes. Para que lado vai o futuro?

“O laço nos tempos que correm” – esse foi o tema escolhido para trabalharmos durante as reuniões do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Cultura neste ano de 2024. Quando escrevemos nossa proposta, não tínhamos notícias dos títulos nem da 5ª Jornada da EBP – Seção Sul nem do XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, eventos que trataram e tratarão de questões conexas aos discursos tais quais formulados por Lacan. Nosso tema, contudo, veio como desdobramento das conversas mantidas ao longo do ano passado, quando ainda nos ocupávamos do tema “ódio e violência”. Dessa maneira, depois de considerar algumas situações de fragilização e ruptura do laço, nos soou especialmente interessante poder trabalhar no último ano de nossa coordenação dando atenção àquilo que está em jogo no próprio laço na medida em que algo do real já se tenha feito notar. Para abordar isso, nossa pesquisa tem passado por três pontos mais específicos: 1) de que trata o laço social; 2) o discurso capitalista; e 3) alguma possibilidade ética quando o objeto a está no zênite.

Se em nossa proposta de trabalho já nos orientávamos por algumas perguntas preliminares, na medida em que os encontros foram se materializando, outras questões também surgiram na condição de deslocamentos. Com isso, os três vetores de trabalho têm se mostrado como efetivos campos de tensão que implicam tanto o interesse clínico quanto as manifestações sintomáticas na cidade. No que diz respeito ao primeiro vetor, além de nos perguntarmos sobre o que está em jogo no laço social, também procuramos recolher seus fundamentos, levando em conta inclusive sua utilidade como defesa contra o real e como encaminhamento das pulsões. Nesse esforço de pesquisa, poderíamos retomar, por exemplo, as pontuações de Hebe Tizio quando ela assinala que “há laço social porque não há laço natural”[2], de modo que, no laço, abre-se uma “articulação [...] que é não toda [...] pois se sustenta sobre um vazio [...] Isso sinaliza que não há determinismo social, pois a causa está no sujeito”[3]. Hebe Tizio ainda destaca que, se uma civilização consegue regular o gozo, é porque ela faz “entrar o gozo no laço social sintomatizado conforme os modelos aceitáveis”[4]. No estabelecimento do laço, portanto, não se trata de anulação do gozo, mas de uma “acomodação” que passa pelo caráter poliédrico do sintoma de cada um – tanto na vertente de satisfação substitutiva quanto naquela conexa ao trauma de lalíngua.

Esse aspecto de regulação elementar, na verdade, recebe uma atenção considerável na aula de 26 de novembro de 1969, quando, na abertura do Seminário 17, Lacan se dedica à produção dos quatro discursos. Nesse ponto, vale lembrar que Lacan não se refere aos discursos como uma sucessão de enunciados. Ele se volta, antes, para um discurso sem palavras, algo que nos permite considerar a consistência do simbólico enquanto instância que promove e, ao mesmo tempo, mobiliza lugares e funções. Diz Lacan: “Mediante o instrumento da linguagem instaura-se um certo número de relações estáveis, no interior das quais certamente pode inscrever-se algo bem mais amplo, que vai bem mais longe do que as enunciações efetivas”[5]. Essa consistência mantida por meio dos discursos, ao saciar um pouco da “necessidade de sentido”[6], ainda permite depreender um arranjo simbólico especialmente arejado, por assim dizer – se comparado ao Outro mais consistente do primeiro ensino. Como nos lembra Lucíola Macêdo, “Lacan não teoriza sobre a sociedade, ele prefere dizer [...] laço social, menos totalizante e mais plural que a sociedade”[7]. Mas se Lacan não aposta na lei nem na identificação ao pai ou ao líder como fundamentos do laço, ele tampouco considera um laço igualitário, já que isso esmagaria as singularidades. Em vez disso, no Seminário 17, Lacan indica um laço dominial: um laço pautado, por um lado, pelo assujeitamento ao significante-mestre[8] que está no lugar de agente e, por outro, pela relação entre renúncia ao gozo e mais-de-gozar, circunscrevendo um naco de impossibilidade.

Nesse momento do percurso, um dos questionamentos que surgiu em nossas conversas foi como poderíamos entender essa acomodação do gozo sem cair numa posição de impotência ou na nostalgia do pai e da lei. Ou melhor, como tratar da regulação quando as disrupções de gozo se fazem perceber por todos os cantos? Essa pergunta foi abordada de acordo com as reconsiderações de Lacan em torno do gozo, por exemplo, nas adjacências do Seminário 20. Lucíola Macêdo aponta que, quando “o gozo não provém do laço com o Outro, mas do regime do Um”[9], é o próprio entendimento do laço que adquire outras camadas, tocando os corpos e, com isso, dando margem – ou litoral –

para alguma orientação. Trata-se, então, “do laço social concebido a partir de lalíngua”[10], a partir daquilo que “da linguagem se alastra, infesta, pulula, titila, ancorando o laço entre os falantes”[11].

O laço, dessa maneira, “se forja como suplência ao abismo da relação que não há”[12]. Frente a falta de determinação que caracteriza o humano, o discurso é um arranjo – precário – para o que não possui garantia. Isso significa, contudo, que o laço é plástico, apesar de se apresentar, hoje, em uma certa modalidade hegemônica, pode-se apresentar também de outro modo. Assim, abre-se margem para a escrita de outros arranjos a partir dos quais não se busca anular o gozo, mas conferir-lhe algum espaço no laço social.

Nesse sentido, as considerações de Jésus Santiago a respeito da pulsão de morte como motérialité do laço social também ajudaram a trazer alguma luz para as questões que emergiam em nossos encontros. Para Santiago, frente ao fato de que a pulsão de morte está na base dos fenômenos civilizatórios, levanta-se um problema acerca da política da psicanálise; e sua hipótese afirma a necessidade de considerar o sintoma como signo e deslocamento da satisfação pulsional, o que induz, por sua vez, a uma concepção inédita de laço social. Decisivo, então, é compreender a pulsão, tal qual faz Lacan, a partir daquele materialismo da palavra que faz do corpo uma caixa de ressonância do dizer. No corpo, diz Santiago, “ecoa a discórdia das línguas”[13], isto é, o desencontro entre a pulsão e o Outro da linguagem. Desse modo, a pulsão nunca alcança o objeto – perdido – que garantiria a satisfação plena; ao contrário, apenas o aborda, contorna. O movimento da pulsão rumo à satisfação, então, é aquele de um vai e volta infinito, uma circularidade que, por si só, constitui um furo, um vazio central, em torno do qual se circula. Na perspectiva que nos interessa, importa sobretudo esse furo localizado no próprio gozo – o que nos permite dizer algo sobre o vetor ético da pesquisa do Núcleo.

Para Jésus Santiago, o laço social concebido a partir desta perspectiva da pulsão não é aquele mesmo delineado como efeito do Nome-do-Pai. Isso é particularmente interessante, porque, de um lado, a “inoperância do sistema patriarcal”[14] e, portanto, do interdito fundamentado na lei do pai implicam uma proliferação do “direito ao gozo”; de outro, contudo, inaugura-se a possibilidade de um laço para além de uma visada imaginária, segundo a qual haveria um Outro universal capaz de ordenar e garantir o todo da civilização. O laço, portanto, não apenas amarra os sujeitos – assujeitados a uma lei outra –, mas implica-os, como autores, na escrita e reescrita de uma experiência que comporte sua própria hiância e que, como tal, não obture o vazio. Afinal, nos laços, há algo que vem pronto, mas também há coisas que é preciso construir.

Antes de dar continuidade ao chamado vetor ético, neste trabalho que segue e seguirá seguindo voltamos nossos olhos para aquela modalidade de discurso que vem como dominante, apesar de paradoxalmente não constituir laço: o discurso capitalista. Patrício Álvarez Bayón salienta como as duas formulações do discurso capitalista (uma equivalente ao discurso universitário, apresentada no Seminário 17, e outra como um discurso à parte) podem parecer, mesmo que por um momento, “dois modos de dizer o mesmo”[15]. Na primeira formalização, tem-se um todo saber que subsume por completo o gozo; na segunda, o rechaço da castração permite, para todos (ou, ao menos, é esta a promessa), um gozo ao alcance da mão. Assim, o que se percebe é que, de fato, em ambas as formulações, instaura-se a tentativa de completa obturação do impossível, numa rejeição da falta ou mesmo na forclusão do sujeito, multiplicando as segregações. Mais ou menos na esteira do que diz Lacan em Estou falando com as paredes: o capitalismo, sobretudo, forclui “as coisas do amor”[16].

Dito isso, o que significa, pois, pensar o laço nos tempos que correm? No ponto em que estamos na pesquisa do Núcleo, abordamos a aceleração da civilização com Jacques-Alain Miller e também com Walter Benjamin. Deste último, é significativa a imagem do anjo da história que observa assombrado as incessantes ruínas produzidas pelo vendaval do progresso, que empurra, sem trégua, rumo ao futuro. O anjo, diz Benjamin, “gostaria de parar para acordar os mortos e reconstituir, a partir dos seus fragmentos, aquilo que foi destruído”[17], mas não pode: os ventos são fortes demais. Para Miller, estes “tempos” – no plural – que correm marcam, por sua vez, a impossibilidade de um presente, de tomar o tempo para si. Isto é, trata-se da impossibilidade de ser simplesmente um sujeito no tempo, de forma que cada um, de vez em quando, se percebe arrastado, feito dejeto pelos tempos, tal qual o anjo de Benjamin. Isto é, trata-se da impossibilidade de ser simplesmente um sujeito no tempo, de forma que cada um, de vez em quando, se perceba arrastado, feito dejeto pelos tempos, tal qual o anjo de Benjamin. A esse respeito, Miller, no começo de seu curso Todo mundo é louco, traz uma indicação: “fazer uma pausa é muito importante”[18]. Pensar o laço nos tempos que correm, então, de partida, não implicaria abrir brechas nesses tempos? Não seria essa uma das possibilidades de um núcleo de pesquisa em psicanálise? 


[1] Texto elaborado por Diego Cervelin e William Leiria, Coordenadores do Núcleo, e apresentado na Jornada dos Núcleos de Pesquisa do ICPOL e do CIEN-SC, "Discursos: ressonâncias", realizada nos dias 18 e 19 de outubro de 2024, tendo como convidada e comentadora Beatriz Udenio (EOL/AMP).

[2] Tizio, Hebe. Novas modalidades do laço social. Asephallus, v, 02, n. 04, maio – set. 2007. Disponível em: <http://www.isepol.com/asephallus/numero_04/artigo_03.htm>.

[3] Ibidem.

[4] Ibidem.

[5] Lacan, Jacques. O seminário: livro 17 – o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p. 11.

[6] Ibidem, p. 14.

[7] Macêdo, Lucíola. Onde não há relação, qual laço? In: Alvarenga, Elisa; Macêdo, Lucíola (Orgs.). Mutações do laço social: o novo nas parcerias. Belo Horizonte: EBP, 2021, p. 27.

[8] Ibidem.

[9] Idem, p. 29.

[10] Idem, p. 30.

[11] Ibidem.

[12] Idem, p. 32.

[13] Santiago, Jésus. Pulsão de morte, motérialité do laço social. Lacan XXI, maio 2019. Disponível em: <https://www.lacan21.com/sitio/pulsao-de-morte-moterialite-do-laco-social/?lang=pt-br>.

[14] Ibidem.

[15] Bayón, Patrício Alvarez. Antecedentes do discurso capitalista. @gente – revista digital de psicanálise, n. 05, out. 2008, p. 10. Disponível em: <https://ebpbahia.com.br/jornadas/2021/wp-content/uploads/2021/08/Antecedentes-do-discurso-capitalista-Patricio-Alvarez.pdf>.

[16] Lacan, Jacques. Estou falando com as paredes. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 88

[17] Benjamin, Walter. Sobre o conceito de história. Tese IX. In: ___. O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2012, p. 14.

[18] Miller, Jacques-Alain. Todo el mundo es loco. Buenos Aires: Paidós, 2015, p. 12.

 


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