Núcleo de Pesquisa sobre Psicoses[1]
Psicoses e autismos: os discursos da época e suas ressonâncias na clínica psicanalítica
Danielle Lemes. Sem título.
Na clínica de nossa época, sobretudo em serviços públicos de saúde, mas também nos consultórios particulares, temos presenciado uma demanda que cresce vertiginosamente oriunda de famílias de crianças, mas também de sujeitos adultos que buscam “avaliação” e “reabilitação” para o diagnóstico de autismo. Como compreender esse fenômeno que tem trazido impasses, conflitos e questionamentos aos praticantes da psicanálise?
Ana, 8 anos, é trazida pelos pais para consultar com a psicóloga dode Saúde a pedido da escola. Quando chegou à profissional, praticante da psicanálise, já havia recebido o diagnóstico de autismo. Ocorreu com Ana algo que tem sido cada vez mais comum. Em uma das escolas em que estudou anteriormente, uma professora disse à mãe que a criança tinha “traços autistas”. Desde então, ela passou a procurar avaliação especializada para a filha. Já na primeira consulta, o pai trouxe uma avaliação realizada por uma neuropsicopedagoga particular. Várias escalas foram aplicadas e o relatório conclui pelas seguintes hipóteses diagnósticas: “TEA moderado, TDAH com apresentação combinada de TOD”[2]. Posteriormente, um psiquiatra corroborou estas hipóteses, concluiu o diagnóstico e prescreveu para a criança três medicações. Desde o início dos atendimentos, a demanda da mãe era a de que a filha fosse encaminhada a uma instituição de reabilitação para o autismo. Porém, segundo a aposta da praticante, não se tratava de um caso de autismo, mas de psicose infantil.
Durante os atendimentos, as ressonâncias do discurso médico, supostamente científico, começam a aparecer também na fala da criança e a atravessar a clínica. Em uma brincadeira, Ana diz que um dos personagens é autista. A praticante pergunta se sabe o que é "autista". Ela diz que não, mas que sua mãe lhe disse que é autista, pois não gosta de barulhos e gritos. Ana conta que está tomando um remédio, a risperidona, e que agora está bem "calminha", dormindo bem à noite. Em uma das sessões, a criança comparece com um colar de identificação de pessoa com autismo. Como manejar essas situações tão delicadas e recorrentes na clínica psicanalítica de nossa época? Do ponto de vista da medicina, Ana parece realmente se enquadrar nos critérios de diagnóstico para TEA. Além disso, o diagnóstico lhe deu acesso a alguns direitos que se mostraram valiosos para ela, como o de ter um professor auxiliar em sala de aula e de participar de um projeto na comunidade do qual ela tem se beneficiado. O diagnóstico de autismo parece também ter tido a função de apaziguar algo da angústia da mãe. Observou-se também que Ana está identificada ao significante “autismo” sem que isso lhe produza angústia, ao contrário, em vários momentos a praticante se perguntou se essa nomeação também não teria contribuído para o efeito de apaziguamento que se verificou durante o tratamento. Mas até que ponto? O que esperar disso no futuro, se, por exemplo, ela realmente for acolhida numa instituição de reabilitação? Nesse contexto de tratamentos padronizados, haverá um lugar para o sujeito aí?
Conforme observa Bayón[3], assim como ocorreu em relação à neurose, a psicose se diluiu nos manuais de psiquiatria, sobretudo no que diz respeito ao diagnóstico de crianças. Esclarece o autor: “a direção se inverte: O DSM-2 baseava-se na psicose - que incluía o autismo -, enquanto no DSM-4 o modelo é o autismo que exclui a psicose”. O DSM-5 segue na mesma direção: com o TEA incluem-se mais casos no espectro e da psicose já não há vestígios[4]. Logo, o problema não está no sujeito e na sua insondável decisão de ser, mas nos instrumentos de medição, conclui o autor.
Robert Whitaker[5], jornalista estadunidense e autor de diversos artigos sobre transtornos mentais e indústria farmacêutica, propõe repensar a psiquiatria atual a partir da lógica biologicista. Ele afirma que o diagnóstico psiquiátrico na atualidade é comumente acompanhado de uma droga psiquiátrica, e que o sofrimento parece ficar ainda mais acentuado com as formas de tratamento hegemônicas. Segundo ele, é um mito afirmar que graças aos avanços científicos das últimas décadas, a sociedade conta, cada vez mais, com diagnósticos psiquiátricos precisos, protocolos de intervenção objetivos e confiáveis, capazes de identificar problemas que até então não eram percebidos. Dessa forma, não é surpresa observar o aumento de pessoas identificadas com algum transtorno mental. Para ele, a psiquiatria tem tornado problemas comuns ao cotidiano da maioria das pessoas em transtornos mentais.
Além do diagnóstico ser recente, até o momento, a etiologia do autismo não está clara, seu aumento vertiginoso não se sustenta em nenhuma das diversas hipóteses causais levantadas pela medicina. No campo da psicanálise, também pode se verificar mudanças: as hipóteses ligadas ao fantasma materno, ou às mães frias, também já foram superadas. Assim, observamos que cada vez mais se fala de autismo sem se saber muito bem o que é. Como consequência, os debates se cristalizam em torno de recomendações emitidas pelas burocracias sanitárias, conforme assinala Laurent[6]. Por outro lado, a relação entre esses dois pontos - um diagnóstico novo para um transtorno de causa desconhecida - conduz o autismo para uma batalha ainda maior, a do tratamento.
Como pensar as ressonâncias desse fenômeno para a psicanálise? Embora estejamos assistindo a esse apagamento progressivo das psicoses nos manuais de diagnóstico que predominam na cultura, a psicose segue sendo uma categoria clínica fundamental para operar na clínica psicanalítica.
Esta conjuntura tem convocado os psicanalistas a pensar não só a pertinência clínica, mas a relevância política de estudar os autismos diante deste cenário que tende a construir universais em que o autismo é tomado como um déficit social irreparável, apenas suscetível de ser treinado para adquirir habilidades. Nesse horizonte, não há lugar para o sujeito e nem para tratamentos singulares a partir daquilo que pode surgir como único em cada um.
Essa “epidemia” nos convoca também a pensar sobre a especificidade do diagnóstico, sob transferência, para a psicanálise de orientação lacaniana. Quando iniciamos nosso percurso de pesquisa, nos questionamos se o autismo seria um tipo particular de psicose ou uma outra estrutura. Aclarado esse ponto e já no caminho de pensá-lo como uma quarta estrutura, conforme uma tendência observada no campo freudiano[7], outras questões surgiram. Quais as diferenças clínicas e teóricas entre as psicoses e os autismos desde uma leitura estrutural e nodal? Como manejar o tratamento destes sujeitos, para além das descrições da nosologia psiquiátrica e das propostas de tratamento pedagógicas marcadas pela normatização de comportamentos?
Em busca destas respostas, nossa pesquisa teórico-clínica abrangeu temas como a constituição subjetiva, as especificidades das psicoses na infância, as contribuições de Lacan sobre a psicose na infância e o autismo. Os conceitos de furo, vazio e borda, e também de “foraclusão do furo nos autismos” e “a foraclusão do Nome-do Pai nas psicoses” foram centrais em nossa pesquisa para poder pensar o diagnóstico diferencial e possíveis tratamentos.
Apenas em três momentos de seu ensino Lacan fala do autismo e a indicação em todos eles é de que a linguagem está detida, interrompida[8]. A consequência é que o sujeito não consegue habitar a linguagem, não consegue passar do primeiro tempo lógico de “enxame de lalíngua” à linguagem como sistema feito de diferenças e oposições.
Outra consequência desta detenção entre lalíngua e a letra é a foraclusão do furo no autismo, tese defendida por Eric Laurent[9]. O autor afirma que esta se dá no tempo lógico anterior à foraclusão do Nome-do-Pai. O furo deve ser pensado por um acréscimo simbólico que efetua um corte e produz uma borda, o que tem uma implicação no imaginário do corpo compreendido enquanto superfície com cortes, orifícios e furos. Para Laurent, o autista não tem um corpo justamente pela foraclusão do furo: as zonas erógenas não se constituem, o sujeito não conta com uma imagem unificada no espelho.
Se as psicoses decorrem de um transtorno de linguagem, a partir do significante no real foracluído do simbólico, e as neuroses produzidas a partir de outro mecanismo de entrada na linguagem que é o recalque, na estrutura autista essa entrada está impedida e o sujeito fica detido no murmúrio de lalíngua.
Sendo assim, como lalíngua pode se precipitar em letra? Seria uma aposta no tratamento dos autismos?
Na medida em que se extrai a letra do conjunto indiferenciado de lalíngua, também se inscreve o furo, se situa uma marca e uma borda que limita o furo. Portanto a letra, pensada desse modo, não é algo que se insere, mas marca uma fronteira que permitirá que se construa um saber via articulação significante. Esses tempos lógicos de passagem da lalíngua à linguagem se cumprem nas neuroses e psicoses, mas como indica Lacan, no autismo há algo que fica congelado, detido. A extração da letra pode se dar no autismo, mas mediante as condições que a foraclusão do furo implicam: o sujeito tenta produzir uma letra inequívoca, sempre a mesma, que itera, e que pode assumir formas de S1-imagem, S1-cifra ou S1-palavra, apostando assim na construção de uma suplência de borda, uma neoborda[10].
Poderíamos pensar a detenção da linguagem como o que impede um enodamento “Simbólico-Real” que terá também efeitos no enodamento “Imaginário-Real”, impedindo a constituição do corpo e do circuito pulsional? São questões que seguimos elaborando.
Sobre o tratamento, seguimos a orientação de Laurent[11]: “Tanto para as pessoas autistas quanto para seus pais, é crucial manter uma pluralidade de abordagens, bem como interlocutores oriundos de vários horizontes. A pedra angular dessa batalha consiste em permitir que cada criança elabore, com seus pais, um caminho próprio, e prossiga nele na idade adulta. E isso levando em conta a incrível variedade de sintomas que o denominado “espectro autista” abarca. Trata-se, pois, de uma batalha pela diversidade”.
[1] Texto apresentado na Jornada dos Núcleos de Pesquisa do ICPOL e do CIEN-SC, "Discursos: ressonâncias", realizada nos dias 18 e 19 de outubro de 2024, tendo como convidada e comentadora Beatriz Udenio (EOL/AMP). Equipe de coordenação do núcleo semestre 2/2024: Sandra C. da Silveira (coord.), Mariana Zelis e Verônica Montenegro. Texto elaborado por: Daniella Zichtl Pichetti, Karina Giustti, Luana Trevisan, Mariana Zelis e Sandra Cristina da Silveira.
[2] TEA: transtorno do espectro autista/TDAH: Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade/TOD: transtorno opositor desafiador.
[3] BAYON, P. A. Dissolução da psicose - Epidemia do autismo. In: Silicet “Todo mundo é louco”. Escola Brasileira de Psicanálise - Associação Mundial de Psicanálise, 2024.
[4] Na década de 1990 considerava-se o nascimento de 1 autista a cada 1000 crianças e hoje calcula-se 1 autista a cada 100 crianças (Whitaker, 2017).
[5] WHITAKER, R.. Anatomia de uma epidemia. Rio de janeiro: Ed. Fiocruz, 2017.
[6] LAURENT, E.. A Batalha do Autismo: da clínica à política. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2014.
[7] MALEVAL, J. C. Por que a hipótese de uma estrutura autística? In: Opção Lacaniana, 6(18), p. 1-40, 2015.
[8] As referências destes 3 momentos são: LACAN, J. Seminário 1 (1953), “Alocuções sobre a psicose na criança” (1968) e Conferência de Genebra (1974).
[9] LAURENT, E. A Batalha do autismo: da clínica à política. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2014. p. 79.
[10] BAYON, P. A. El autismo entre lalengua y la letra. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2020.
[11] LAURENT, E. A Batalha do Autismo: da clínica à política. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2014, p. 19.