Psicanálise Aplicada à Urgência Subjetiva[1]
Gabriela Salomon

Danielle Lemes. Corpo Híbrido.
Primeiramente, bom dia! Obrigada pelo convite, para mim é um prazer estar aqui. Agradeço a Laureci pela apresentação, e como ela disse minha prática se dá primeiro no plantão de emergência de um hospital geral, durante muitos anos. No ano 2005, PAUSA é fundada. Estive em distintos lugares em PAUSA. Comecei na admissão, fui responsável pela admissão, assistência e, atualmente, diretora executiva de PAUSA. Mantenho minha prática clínica também no consultório, mas isso não vem ao caso aqui hoje.
Em primeira instância, meu trabalho é, em realidade, psicanálise aplicada à urgência. O primeiro ponto que vou falar é a psicanálise aplicada à terapêutica: alguns antecedentes. Primeiramente com Sigmund Freud que, em 1918, nos Caminhos da terapia psicanalítica, nos transmite sua preocupação por um fazer extensivo da psicanálise a uma maior quantidade de pessoas, devido à magnitude da miséria neurótica no mundo. Anos mais tarde, funda-se o Instituto de Policlínica em Berlim, a fim de possibilitar a atenção gratuita para uma maior quantidade de pessoas possível.
Jacques Lacan, em 1964, no Ato de Fundação da Escola Freudiana de Paris, constitui três seções: primeiro, a seção de psicanálise pura, ou seja, o que tem de práxis e a doutrina propriamente dita, quer dizer, a psicanálise didática. Em segundo, a seção de psicanálise aplicada, o que quer dizer, de terapêutica e de clínica médica, dizia Lacan. E terceiro, a seção de recenseamento do campo freudiano, mas não vamos nos deter nisso.
A terceira referência que tomo como antecedentes de psicanálise aplicada à terapêutica é J-A Miller, no seminário O lugar e o laço, onde faz uma diferenciação entre o que é a psicoterapia e a psicanálise aplicada à terapêutica. Ali diz que aplicar a análise à terapêutica é um exercício analítico, e muito diferente do exercício do psicoterapeuta. A melhor prova disso é que para exercer como psicoterapeuta não faz falta análise, basta com saber um pouco de psiquiatria, um pouco de psicologia, etc. Sendo assim, faz uma diferença importante e afirma que ser psicanalista é estar em regra com a finalidade terapêutica que se espera de um analista.
O princípio de toda psicoterapia é a incidência da palavra do Outro. Há um Outro que diz o que fazer e se espera uma aprovação. Quer dizer que as psicoterapias estão sustentadas em a-a’. Para dar um exemplo, uma paciente que chega ao hospital dizendo que tem um ataque de pânico.
Abro um parêntese para explicar que o plantão de um Hospital geralmente está composto por médicos, pediatras, cirurgiões, um psiquiatra e um psicólogo. Na verdade, formo parte dos primeiros psicólogos - porque esse é o título, o governo não toma psicanalistas, mas psicólogos, depois nós aplicamos psicanálise. Nós fazíamos plantões de 24 horas e um domingo a cada seis domingos. Esse era nosso trabalho. A demanda chegava primeiro ao médico, geralmente as pessoas que vão ao hospital não pedem por um psicólogo, é o médico quem faz tal encaminhamento. Então, o médico me disse que o paciente era para mim, o sintagma “é para você”, então, quer dizer que há algo do sofrimento mais além do corpo orgânico.
Assim, seguindo com o exemplo, a mulher me diz “tenho um ataque de pânico, preciso de medicação”. Pergunto o que lhe acontece e responde que vem de outro hospital em que lhe disseram que tem ataque de pânico, e que isso se medica com Clonazepam, Rivotril, etc. Ao que respondo, “bom, mas o que se passa com você?”, o que a mulher descreve é que estava muito angustiada, que havia se separado de seu companheiro, ou seja, era uma crise de angústia. Portanto, não a medicamos, apenas localizamos o tema, mas ela vinha falando do discurso do Outro, que dizia o diagnóstico posto pelo discurso do Outro que era ataque de pânico, e, por fim, era uma crise de angústia por um assunto amoroso.
Para seguir com O lugar e o laço, o que diz J-A Miller, sobre a diferença entre um analista e um psicoterapeuta em relação ao sintoma? Diz que o sintoma é aquilo que não anda e, para um psicoterapeuta, se trata de adaptá-lo à realidade. Nós, os analistas, tomamos o sintoma como o mais real do sintoma. Ali há um dado fundamental que é a crença no sintoma, à diferença do psicoterapeuta em que aquilo que importa é que o paciente funcione e se adapte à realidade, nós, ao contrário, apontamos para que o sujeito creia no seu sintoma. Há uma referência em Televisão, que Lacan aí nos adverte, que a psicoterapia conduz ao pior especialmente quando do que se trata é de normalizar verdade, desejo e gozo.
A psicanálise pura não é um ideal que serve para depreciar a psicanálise aplicada, ao contrário, diz Miller, serve para orientar e tornar-se responsável pela psicanálise aplicada. Quando escreve O lugar e o laço, Miller faz referência a um dispositivo de psicólogos, que se dirigiam rapidamente aos acidentes para fazer as pessoas falarem, e ele diz que nem sempre falar faz bem. Essa referência é interessante. Ele traz um exemplo em que em um dispositivo, em uma instituição, fazem falar a um jovem que, finalmente, acaba desencadeando.
Eu tenho um exemplo, em que estive presente quando em Buenos Aires houve uma catástrofe; Cromañón. Não sei se escutaram falar, era uma boate onde entravam ao redor de duzentas pessoas, e esse lugar pegou fogo durante um show. Naquele dia eu estava de plantão. Nesse evento havia jovens, em que muitos deles haviam levado seus filhos porque não tinham com quem deixá-los, etc. A indicação do hospital era que todos os que haviam passado por essa situação de trauma deveriam falar com um psicólogo.
Para tomar uma referência de Miller, de algo que é muito útil quando alguém se dedica à psicanálise aplicada, é o livro Efeitos terapêuticos rápidos em psicanálise, que surge de uma conversação realizada em relação à catástrofe de Atocha. É uma conversação que traz cinco casos, em que se montou uma rede depois de Atocha, em Madrid, mas a conversação foi em Barcelona.
Há um exemplo ali de que gosto muito, creio que de Araceli Fuentes, que mostra aquilo que Miller nesse momento chama de “trauma”. Isso porque nem todos os que passam por uma situação de catástrofe, significa um trauma para o sujeito, é preciso que haja uma marca. Além do trauma geral que já sabemos de que “não há relação sexual”, também está o trauma de cada um e os efeitos do significante sobre o corpo.
Extrai-se daí um exemplo muito interessante, de uma mulher que deveria se encontrar com uma amiga em uma confeitaria, e acontece a catástrofe com esses trens. Ela sai correndo quando vê a explosão e no caminho vê um homem atirado, com os olhos abertos, como se estivesse olhando para ela. O que ela faz? Ela sai, não fica parada olhando, mas vai embora, foge. Por que essa situação - isso surgiu na conversação com Miller - constitui um trauma para ela? Essa mulher, que passou a ter pesadelos e muita angústia, é uma das pessoas que consultou essa rede que se montou nesse momento. Por que tanta angústia? À noite, ela via, nos pesadelos, um homem que a olhava como um Cristo; isso tinha a ver com sua história, seu pai era de uma família muito religiosa, católica, em que o dito familiar era “se ver alguém doente, tem que dar a outra face”. Ela tinha internalizado que diante de alguém doente deveria ajudar, a angústia era porque havia saído correndo. O que diz Miller é que para que algo seja traumático tem que haver uma diferença entre o dito e o fato. Não é o fato Atocha que traumatiza, mas o dito do pai, de ter que colocar todo amor, de ter que ajudar sempre, ter que dar a outra face.
Laureci – ela não esteve à altura desse dito familiar, não é?
Gabriela - Exato. Ela se sentia muito culpada. Nos pesadelos aparecia o olhar do Cristo jazendo. Bom, não irei contar todo o caso, mas há uma progressão em seus sonhos, e uma saída para ela em doze sessões de tratamento, onde cede a angústia e aparece algo do vital nessa mulher.
Nesse mesmo livro em questão, há um comentário interessante de Guéguen em relação ao tempo do tratamento: são tratamentos muito breves que não se confundem com terapia breve, afirma ele. Não fazemos terapias breves, mas sim tratamentos breves. Diz Guéguen que não é que o paciente tenha esgotado todos os recursos que uma cura analítica poderia oferecer-lhe, senão que, simplesmente, o melhor que poderia obter não o obriga a ir mais longe. Isso me lembra que no Seminário 24, Lacan diz que a psicanálise é um viés prático para sentir-se melhor. Nós, em PAUSA, o temos muito presente: a psicanálise é uma prática, um viés prático, para se sentir melhor. Me parece que isso é bastante orientador para tratamentos de um tempo determinado.
A psicanálise aplicada à urgência. Faz muitos anos que comecei com isso, começamos a buscar as referências em Lacan, em nossos cursos em PAUSA. É notável registrar que Lacan em toda sua vida até o final se ocupou sobre o tema da urgência, não esqueçamos que ele era psiquiatra.
No ano 1976, no final da vida de Lacan, o Prefácio à Edição Inglesa do Seminário 11, dá testemunho da sua relação com a urgência. Relação articulada àquilo que apressa, urge. Cito: “assinalo que, como sempre, os casos de urgência me atrapalhavam enquanto eu escrevia isto. Mas escrevo, na medida em que creio dever fazê-lo, para ficar a par desses casos, fazer com eles par”[2]. Ao passo que, dez anos antes, em 1966, no artigo Do sujeito enfim em questão, explicita Lacan que: “Agora, pelo menos, podemos contentar-nos com a ideia de que, enquanto perdurar um vestígio do que instauramos, haverá́ psicanalistas para responder a certas urgências subjetivas”[3]. Esse é o único texto em que Lacan fala de urgências subjetivas. Em outros, fala de urgências, mas de urgência subjetiva, é nesse texto unicamente. Sublinhemos que é necessário que haja psicanalista para atender às demandas subjetivas.
Miller, no Ultimíssimo Lacan, tem um capítulo sobre a urgência, em que diz que a urgência é anterior ao significante da transferência. Chama de urgência a uma modalidade temporal que responde à chegada de um trauma, quer dizer que fala de tempo e da inserção de um trauma, define assim a urgência. Quando falamos de tempo em psicanálise, falamos de tempo lógico. Trata-se dos três tempos de que fala Lacan: o instante de ver, o tempo de compreender e o momento de concluir. Na urgência, o que acontece é que há um curto-circuito entre o instante de ver e o momento de concluir, finalmente trata-se de instalar um tempo de compreender. Veremos como fazer isso.
Então, a urgência será isso que empurra, que não admite espera, o que põe em movimento a demanda de um potencial analisante.
Lhes peço que se há algo que não entendem, me perguntem.
Gresiela: Como a gente diferencia essa urgência que está do lado do paciente da que pode haver na escuta do analista com aquele certo desejo que Freud pediu para não termos que é do furor curandis?
Gabriela: Muito boa a pergunta, porque nós nos orientamos pelo Real, por algo do impossível e de um limite, quer dizer, não se trata de furor curandis, nem na psicanálise aplicada, nem na pura. Os testemunhos de passe dão conta disso, sempre há algo do incurável. Entendo sua pergunta porque a urgência nos confronta e é um desafio, Laurent no primeiro Congresso de Saúde Mental em Buenos Aires, nos anos 2000, diz que se trata de fazer uma intervenção que marque um antes e um depois na vida do sujeito. Mas é verdade que, às vezes, como sintoma do analista, querer curar, mas não se trata disso, sabemos que há algo do incurável, nos testemunhos vemos que finalmente vamos do sintoma ao sinthome. E o sinthome, ainda que seja um ponto de chegada não é que o sujeito se cura, se não que, precisamente, há um nome de gozo, um significante novo. Mas, em três meses, como nos orientamos? Em localizar algo da urgência do sujeito. Em PAUSA os tratamentos são de três meses, a que apontamos? A que o sujeito possa subjetivar algo de sua urgência. Trata-se de abrir perguntas, quer dizer que o sujeito possa, mais além de sua urgência, abrir uma demanda de análise.
O tratamento de três meses é psicanálise aplicado, e é um tratamento para trabalhar sobre essa urgência, mas o desafio e a aposta é que via transferência se abra uma demanda. Nesse sentido, poderia dizer rapidamente que meu trabalho no hospital possui uma grande diferença do trabalho em PAUSA. No hospital, se se produzia alguma transferência com algum paciente era muito malvisto que o paciente continuasse no consultório, era como roubar o paciente do hospital. Em PAUSA, com a orientação lacaniana, apostamos na transferência, para que se abra uma demanda de análise e o sujeito possa eventualmente continuar com o terapeuta em seu consultório. Apostamos na transferência, essa é a grande diferença do que ocorre no hospital.
Jussara: Na psicoterapia há um Outro. Como fica nesse tratamento, na experiência do PAUSA, de três meses, como fica a relação com o Outro? Como fica, no trabalho do analista, essa relação com o Outro?
Gabriela: Trouxe mais de uma vinheta em que penso que lhe responderei. Na universidade aprendemos que a psicanálise dura muito tempo. Com a vinheta, irei lhe responder como se intervém e ao que apontamos com a urgência.
Eneida: J-A Miller tem um texto de 2017, que chama Psicanálise pura, psicanálise aplicada, publicado na Opção Lacaniana online. Queria ver se você pode comentar sobre o que ele diz que a psicanálise pura está do lado do sintoma e a psicanálise aplicada do lado do fantasma.
Gabriela: O que ocorre na urgência é que as pessoas que consultam muitas vezes, em casos de neurose, se trata de uma vacilação fantasmática, mas também podem vir com algum sintoma. Em casos de psicose podem vir por alguma desamarração. Se trata em primeira instância de alojar isso. Uma das definições da urgência é uma ruptura aguda da cadeia significante e então trata-se de apontar a como reinserir o sujeito na mesma.
É um tema interessante pensar psicanálise pura ao lado do sintoma, sim, se tomamos sintoma como o sintoma analítico, desse que se dirige ao Outro, que busca interpretações, onde o analista está no lugar de Sujeito Suposto Saber. Ainda, diria que na urgência isso não ocorre, geralmente.
Laureci: Dois pontos do que você falou até aqui. A primeira, você disse que o psicanalista vai levar o trabalho para que o sujeito creia no seu sintoma. Queria saber se você poderia nos esclarecer um pouco mais sobre isso. E a segunda é quando você fala da diferença da psicanálise pura e aplicada, falando de Lacan em Televisão, quando se diz que psicanálise aplicada não é para desprestigiar e, sim, para orientar. Então, lhe pergunto como a psicanálise aplicada orientaria a psicanálise pura? Ah, é ao contrário? Então não tem mais a segunda pergunta. Ótimo!
Gabriela: Em relação ao que dizia Eneida, sim, no final do ensino de Lacan nos orientamos mais pelo sintoma, mas a prática nesses três meses na urgência é que as vezes é difícil localizar o sintoma porque vem do lado do fantasma, e isso é a vacilação fantasmática. Mas a orientação é orientar-nos em direção ao sintoma e buscamos sintomatizar a urgência.
A crença no sintoma, é necessário que alguém que consulte um psicanalista, creia em seu sintoma, porque isso não tem que ver com nenhuma realidade, se não com o que é o sofrimento desse sujeito, e que o sofrimento seja dirigido ao Outro, por exemplo na urgência que essa crença nos seja dirigida. É preciso que essa crença seja dirigida a alguém.
Mais adiante, falarei do acting out e da passagem ao ato. Mas vem ao caso dizer, que Lacan, no Seminário 10, diz que o acting out pode ser um sintoma, mas não o é porque, em verdade, o sintoma se basta a si mesmo. A menos que, sob transferência, se dirija a um analista. Enquanto o acting out é um chamado ao Outro. Por isso digo que ao sintoma lhe é preciso a transferência e a crença do sujeito de que isso quer dizer algo.
No livro de Ricardo Seldes, La Urgencia Dicha, ele questiona, por que dicha?. Trata-se de um equívoco porque “dicha” se relaciona à felicidade, ao passo que tem a ver com o dizer. Para nós, no trabalho de urgência e não apenas, temos o que o sujeito diz, o enunciado, e temos a enunciação que é como escutar nos enunciados do sujeito algo de sua enunciação.
Na clínica da urgência, há os dois fenômenos paradigmáticos, o acting out e a passagem ao ato. Estes se apresentam em sujeitos angustiados podendo ser após uma ruptura amorosa, da ingestão de comprimidos, problemas de trabalho etc.
Vou tomar como referência o Seminário 10 porque são os fenômenos paradigmáticos da urgência de como se apresenta o sujeito. No início do Seminário 10, Lacan busca localizar a angústia no campo dos significantes. Apresenta um quadro de dupla entrada, tomando o texto Inibição, Sintoma e Angústia de Freud e localiza o acting out e a passagem ao ato nesse quadro. Dessa forma, posiciona a passagem ao ato embaixo do embaraço. É interessante porque Lacan sempre se prestou aos casos de Freud, dentre eles o caso da jovem homossexual, onde localiza a passagem ao ato. Ele faz uma diferença entre passagem ao ato e acting out. No acting out o sujeito realiza um chamado ao Outro. Por que hoje proliferam tanto os acting outs e as passagens ao ato? Guy Trobas o toma num seminário que proferiu em Miami, diante da queda do Nome do Pai, onde não há mais lei, os sujeitos são postos no lugar de objeto. Isso dificulta diferenciar se estamos diante de um acting out ou de uma passagem ao ato. Quer dizer, o sujeito se dirige ao Outro ainda, ou se deixou cair, como diz Lacan, laisser tomber? Na passagem ao ato, o sujeito sai de cena, foge, como foi o caso da jovem homossexual, quando enfrenta seu pai e estava com a amante, e a partir de um dito da amante e do pai que lhe retira o olhar, ela se joga em um fosso em Viena. Enquanto, nesse mesmo caso, no momento em que a jovem homossexual estava passeando com sua amada pelas ruas de Viena no início do século XX, poderíamos pensá-lo como um acting out.
Me interessa dizer o seguinte sobre o tema da passagem ao ato, Lacan toma a fórmula do fantasma e diz que o golpe na passagem ao ato começa ao lado do sujeito. O embaraço, a barra, cai sobre o sujeito. Há um significante a mais. Irei apresentar uma vinheta com isso. O sujeito fica barrado por um significante, se identifica ao objeto a, e sai de cena. Laisser tomber se relaciona a isso.
Uma vinheta: no hospital há um chamado da emergência para que um médico vá a um domicílio, a ambulância vai. Quando a médica clínica chega - não nós, os psiquiatras e os psicólogos não se moviam dos hospitais, apenas os médicos clínicos - e então a médica vai ao domicílio, vê que um sujeito está com metade de seu corpo para fora de uma sacada. A médica diz: o que você está fazendo? Então, o homem se joga e cai. Tratava-se um sujeito obeso, que cai sobre a ambulância e quebra o teto da ambulância, mas ele passa bem. No dia seguinte, tenho a oportunidade de fazer uma entrevista com esse sujeito. Primeiro, atendi a médica, muito angustiada, às voltas com o que havia feito ou dito. Alguém poderia pensar que o “o que está fazendo?”, contingente, algo normal de ser dito, produziu o desencadeamento à passagem ao ato. Mas, entrevistando o sujeito, era um sujeito psicótico que, quando nasce o seu filho, naquele momento então com dois anos, ele começa com a ideia de morrer e com uma voz que lhe dizia que tinha que se matar. Ele vai a diversos dispositivos da cidade para dizer que não estava bem, mas ninguém o escuta, até que ocorre isso. O homem estava desencadeado, e o desencadeamento se produziu depois do nascimento de seu filho, ele queria morrer. Mas, é verdade que essas palavras contingentes “o que você está fazendo?” foram o que desembocaram na passagem ao ato, ainda que tenha falhado, mas passagem ao ato no fim. Esse é um exemplo de como uma palavra pode desencadear o que é um sujeito barrado e identificado ao objeto.
Já o acting out tem um pé no sintoma e um pé na turbação, para seguir com o quadro de dupla entrada, em cima está o sintoma e ao lado a turbação[4].
Eneida: Coincidentemente, eu estava fazendo uma pesquisa no dicionário sobre esse termo, para um outro trabalho que estou fazendo, e a turbação é um termo que aparece no quadro de inibição, sintoma e angústia que o Lacan coloca no Seminário 10. A turbação no dicionário é um termo de origem jurídica que diz de uma prática de atos abusivos que afrontam os direitos de alguém, levando ao impedimento do livre exercício da posse. E como termo bíblico quer dizer um estado de aflição, de inquietude e de desassossego.
Gabriela: Muito obrigada. Lacan nesse seminário, está buscando situar a angústia na rede dos significantes. Pensemos que estamos no início do Seminário 10 e, posteriormente, ele vai trabalhar isso de outro modo, em A Terceira. Mas, voltando ao acting out, trata de um desprendimento, vinculado à falta do significante. O sujeito que produz um acting out não possui significante que o represente esse momento. Em uma das referências do acting out, Freud fala do agieren, do fazer, do atuar, acting tem a ver com algo que se atua onde não há significante. Mas, quando se fala de turbação, também há uma queda, um desamparo e a perda de um significante. O golpe do fantasma é ao contrário, porque o sujeito se experimenta como um “a” e busca constituir-se do lado significante em relação ao Outro. Por isso, o difícil do acting out é que chama a interpretação, mas como fazer isso? Lacan traz três possibilidades do que não fazer, que são: reforçar o Eu, proibir ou interpretar.
Na lição II do Seminário 10, Lacan traz, para situar, um tema sobre como responder ao acting out. E questiona, na experiência do amor, como fazer cair o Outro em nossas redes. Responde que há duas estratégias: a primeira, te amo, ainda que você não queira. Trarei um exemplo da vida cotidiana e vão se dar conta rapidamente do que se trata, é uma estratégia que não tem resultado porque é imaginária. Por exemplo, uma mãe que diz ao filho “quando sair não se esqueça de fazer isso ou aquilo porque quero seu bem”; ou um analista que diz “eu lhe disse” “eu avisei”, isso não é eficaz. A segunda estratégia sim é eficaz, trata-se do desejo do analista em sua versão te desejo ainda que não o saiba. Do que se trata? Darei outro exemplo: como dar certeza a um sujeito, neste caso ao analisante, que ocupa um lugar no desejo do Outro? Isso tem a ver com que é um desejo que está articulado, mas não é articulável.
Por exemplo, um sonho se associa e há um desejo que é articulável. Aqui se trata de um desejo articulado e que, portanto, é algo que alguém faz e não algo que diz. Se alguém vem e diz “tomei pílulas porque meu noivo me deixou estou desesperada e quero me matar”, se damos uma interpretação do porquê isso ocorre nada disso serve. Por quê? Porque é uma interpretação. Por outro lado, fazer algo, demonstra o desejo do analista, ainda que não o saiba. Preocupar-se, chamar, marcar mais um horário, esses são atos que colocam o desejo do analista.
Uma mulher de 35 anos chega ao plantão de um hospital público, após a ingestão de uma quantidade importante de medicamento. Afirma que “discuti com meu parceiro, ele me disse ‘tudo acabou’, me enfiei na banheira e me injetei calmantes”. A mãe chega à casa dela por um acaso, e chama o SAMU, nesse estado ela chega no plantão. A paciente é levada à PAUSA, já que contava com família. Na admissão, disse que sua decisão de não querer mais viver se produz depois da ruptura com seu parceiro, com quem tinha um projeto de convivência. Algo a destacar de sua história é que em sua infância o pai havia abandonado sua mãe, e ela não havia tido mais contato com ele. É proposto à paciente se dar um tempo para repensar suas relações amorosas, e é levada a um terapeuta. Ao finalizar a primeira entrevista, a analista se mostra preocupada pela intensa angústia da paciente. Sugere a ela vir todos os dias à PAUSA até que algo de sua angústia cedesse.
Até aqui poderíamos pensar que o que desencadeou a passagem ao ato foi um significante a mais, “acabou”, palavras ditas pelo seu parceiro que a lançam para fora da cena. Quando chega à PAUSA poderíamos pensar que estamos no campo do acting out com uma direção ao Outro. A preocupação da analista, a indicação de que fosse todos os dias à PAUSA e os efeitos obtidos dão conta do que é colocar em jogo o desejo do analista, nisso que Lacan traz como segunda estratégia: te desejo ainda que não o saiba. O que passou nesses três meses em PAUSA? Como se estabiliza essa paciente? Rapidamente soubemos que estávamos diante de alguém com uma “desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida do sujeito”[5], os três meses de tratamento lhe permitiram concluir à paciente que preferia estar sozinha e sem parceiro. Encontrou o início de uma solução sinthomática: fazer-se um nome com a profissão e encontrar um gosto em cuidar animais abandonados da rua.
Para finalizar, um tempo anterior à PAUSA, mas germinal, foi uma experiência no final dos anos oitenta, em que um grupo de analistas sob a coordenação de Ricardo Seldes realizou um trabalho no hospital na província de Buenos Aires. O trabalho consistia que todos os casos de urgência fossem derivados a esse grupo de investigação. Dessa experiência surgiu um livro, ali há uma conferência de Françoise Leguil que diz “o analista que se depara com a urgência, que não seja um homem às voltas com tudo, mas um homem às voltas com sua própria urgência”[6].
Transcrição e tradução: Bárbara Backes Ferreira
Revisão da tradução: Paula Nathalie Nocquet
Estabelecimento e revisão final: Gabriela Salomon
[1] Aula Inaugural ministrada por Gabriela Salomon, membro da EOL e da AMP, no dia 10 de março de 2024, na atividade de abertura do ano letivo do ICPOL.
[2] LACAN, J. Prefácio à Edição Inglesa do Seminário 11 (1976). Em: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p.569
[3] LACAN, J. De um sujeito enfim em questão (1966). Em: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p.237
[4] Em português encontramos o termo como Efusão ou Perturbação.
[5] LACAN, J. O Seminário, livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1955-56). LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. (Trabalho original publicado em 1957-58).
[6] LEGUIL, F. Reflexiones sobre la urgencia. En: La urgencia: El psicoanalista en la práctica Hospitalaria. Argentina: R Vergara. Ed, 1988, p.28.