Prólogo de Guitrancourt

Jacques-Alain Miller


Danielle Lemes. Sem título.


Em nenhum lugar do mundo existe diploma de psicanalista. E não é por acaso ou por inadvertência, mas por razões que se devem à essência do que é a psicanálise.

Não se avista aquilo que decidiria ser a prova de capacidade do psicanalista, já que o exercício da psicanálise é de ordem privada, reservada à confidência que o paciente faz a um analista do mais íntimo de sua cogitação.

Admitamos que a análise responda a isso por uma operação que é a interpretação, e que concerne ao que denominamos o inconsciente. Essa operação não poderia ser a matéria da prova?  − já que a interpretação não é o apanágio da psicanálise, e que toda a crítica de textos, de documentos e de inscrições também a utiliza. Porém, o inconsciente freudiano somente é constituído na relação com a fala que mencionei, não podendo ser homologado fora dela, e a interpretação psicanalítica não é conclusiva por si mesma, mas por meio de seus efeitos imprevisíveis que suscita naquele que a recebe e no âmbito desta mesma relação. Não há como escapar disso.

O resultado disso é que somente o analisante é quem deveria ser interrogado para atestar a capacidade do analista, se o seu testemunho não fosse falseado pelo efeito de transferência, que se instala facilmente desde o início. Isso nos mostra que o único testemunho possível, o único a dar alguma segurança sobre o trabalho realizado, seria o de um analisante após a transferência, mas que ainda gostaria de servir à causa da psicanálise.

O que eu designo aqui como o testemunho do analisante é o núcleo do ensino da psicanálise, na medida em que responde à questão de saber o que se pode transmitir ao público de uma experiência essencialmente privada.

Esse testemunho, Jacques Lacan estabeleceu sob o nome de passe (1967); a esse ensino deu o seu ideal, o matema (1974)1. De um ao outro há toda uma gradação: o testemunho do passe, ainda impregnado com a particularidade do sujeito, está confinado a um círculo restrito interno ao grupo analítico; o ensino do matema, que deve ser demonstrativo, é para todos – e aqui é que a psicanálise se encontra com a Universidade. 

A experiência vem sendo realizada na França há quatorze anos; já se tornou conhecida na Bélgica por meio do Campo Freudiano; e a partir de janeiro terá a forma de “Seção Clínica”.

É preciso deixar claro o que é e o que não é esse ensino.

Ele é universitário; ele é sistemático e graduado; ele é ministrado por responsáveis qualificados; ele é sancionado por diplomas.

Ele não habilita para o exercício da psicanálise. O imperativo formulado por Freud de que um analista seja analisado não foi somente confirmado por Lacan, mas radicalizado pela tese segundo a qual uma análise não tem outro fim senão a produção de um analista. A transgressão dessa ética custa caro – e toda vez do lado daquele que a comete.

Seja em Paris, Bruxelas ou Barcelona, sejam suas modalidades estatais ou privadas, a orientação é lacaniana. Aqueles que a recebem são definidos como participantes: esse termo é preferível ao de estudante para ressaltar o alto grau de iniciativa que lhes é dado – o trabalho a ser produzido não lhes será extorquido; depende deles, será guiado e avaliado.

Não há paradoxo em afirmar que as exigências mais estritas concernem àqueles que experimentam a função de docentes no Campo Freudiano, sem precedentes em seu gênero: já que o saber, se ele obtém sua autoridade da sua coerência, não encontra sua verdade senão no inconsciente, assim dizendo, de um saber em que não há ninguém para dizer “eu sei”, é o que se traduz pelo seguinte: que não se ofereça um ensino senão à condição de sustentá-lo por uma elaboração inédita, por mais modesta que seja. Ele [o saber] começa pela parte clínica desse ensino.

A clínica não é uma ciência, assim dizendo, um saber que se demonstre; é um saber empírico, inseparável da história das ideias. Ao ensiná-la, não estamos apenas suprindo as deficiências de uma psiquiatria cujo tesouro clássico é frequentemente  negligenciado por causa do progresso da química; estamos também introduzindo um elemento de certeza (o matema da histeria). As apresentações de pacientes irão amanhã encorpar esse ensino. De acordo com o que foi outrora sob a direção de Lacan, nós procederemos passo a passo.

15 de outubro 1988

Tradução: Luis Francisco Camargo
Revisão: Guy Trobas, Laureci Nunes e Paula Lermen

Texto traduzido e publicado com a amável autorização do autor, sem revisão pelo mesmo.

1 - Do grego Mathema, o que se aprende.


MILLER, Jacques-Alain. Prologue de Guitrancourt. In: UFORCA. Pour l’Université Populaire Jacques Lacan, 12 dez. 2010. Disponível em: https://www.lacan-universite.fr/prologue-de-guitrancourt-par-jacques-alain-miller/. Acesso em 16 out. 2024.