Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança - CIEN/ SC
Laboratório Encontro dos Saberes[1]
Por ter sido sonhado
Danielle Lemes. Sem título.
"Toda língua é um recife de metáforas abandonadas" - Guy Deutscher
Uma das integrantes do Laboratório recebe um e-mail com a seguinte demanda: “Sou gestora em uma unidade escolar. A comunidade escolar é em sua maioria carente. Muitas crianças têm problemas familiares. Isso está repercutindo na escola em um processo de muita violência, das mais diversas manifestações de violência. Pensei em fazer grupos de conversas, principalmente com os adolescentes. Acho que eles precisam muito de alguém que escute e possa conversar sobre sentimentos e realidades.”
Agendada a conversa, o Laboratório Encontro de Saberes escuta a diretora e coordenadora pedagógica de uma Escola Pública cujo impasse se localiza no “não sabemos mais o que fazer”. Ponto do “não saber” que provoca a abertura de queixas de professores, coordenação e direção em relação aos alunos - “estão muito agressivos”. A sala de espera da diretoria sempre movimentada pela presença de alunos encaminhados pelos professores e que “não sabem o que fazer” com os estudantes que ofendem, batem nos colegas. Conflitos que não recebem uma mediação em sala de aula e desembocam na sala de espera da diretoria para receberem a “devida repreensão”.
Diante desse quadro, a diretora demanda ao Laboratório conversações com os alunos do 7º ano. Duas turmas que, pensando nas agressões relatadas, são as que mais solicitam intervenções da equipe de educadores.
Importante salientar que esta escola possui profissionais que até pouco tempo não faziam parte desse cenário, são eles: o segurança que fica nos portões das escolas e o policial militar dentro da instituição. Isso é efeito da promulgação de uma Lei[2] que foi implementada depois de um ataque ocorrido em uma creche numa cidade do interior do Estado, no ano de 2023, onde algumas crianças foram mortas.
De cinco conversações propostas pelo CIEN, na primeira foi possível fazer circular a palavra junto aos alunos que se identificavam como “a turma que é silenciada”, que não pode falar. Em meio a muitos “cala boca”, gritos, não ouvir os colegas na conversação, foi possível perguntar: quem não pode falar aqui? No barulho da turma que se nomeia “não somos ouvidos”, algo que incomoda emerge na conversação e alguém pergunta - “O que a Sra. acha de quem fala mal da gente?”, uma integrante do Laboratório intervém “O que é falar mal?”, com a palavra circulando uma hipótese aparece - “falar mal do outro significa que não conhecem a gente”.
Falar dos nomes de cada um aparece nessa conversação e num movimento de ser nomeado - Maria, José, João etc., assim conhecemos o outro, recebemos um nome e nos identificamos. Como nos apresenta Nohemí Brown[3], “Os corpos afetados por significantes que são oferecidos pelos discursos, que podem, por um lado, deles receber uma nomeação ou uma identificação, mas, por outro, estarem a eles submetidos”.
Numa das conversações, um aluno relata como foi escolhido seu nome. Segundo seus colegas- “ele fala muito”, sendo silenciado por uma colega que coloca a mão em sua boca. Mesmo assim, ele fala em meio a muitas falas na sala - “foi minha tia que sonhou que minha mãe estava grávida de um menino, e que ele teria a missão de salvar a família”. Quem ele deveria salvar? A turma, a escola, a família, ele mesmo? Do significante “violência”, o que emerge é não poder falar e sim calar, porém, na turma que é silenciada, aparece o que precisa falar para salvar.
Se as crianças são faladas pelos Outros, família, escola, medicina, religião, podemos dizer que também são sonhadas. O discurso de ser sonhado e nomeado sustenta o laço social e possibilita o vínculo com o Outro. O discurso, sendo da ordem do significante, pode afetar o corpo, pode ser “violento”, como a turma desta escola, porém algo pode escapar, que não se domina, quando se introduz o lugar do dizer, o discurso analítico.
Nas conversações, os sonhos aparecem como forma de desejos, “ser” ou “vir a ser” postos em palavras como: “quero ser pastor”, “futebolista”, “não sei”, “médica”, medos e desejos se misturam na conversação. O uso dos sonhos no discurso enquanto um desejo de realização.
A escola faz parte da práxis no mundo contemporâneo. Nela, transitam os sonhos e as fantasias de crianças, adolescentes e adultos. A singularidade permeia cada um deles nas conversações que realizamos. Demandados pelo significante “violência” fomos convocadas na localização do mal-estar. Se, num primeiro momento, o mal-estar vem nomeado pela escola, através de uma demanda que não é dos alunos, quando são convidados a falar, cada um tem a chance de nomear, à sua maneira, o mal-estar.
Após uma reunião do Conselho de Classe, na qual participaram estudantes, professores e os pais, os alunos afirmam que estão “incomodando menos uns aos outros”.
Realizadas as conversações com os alunos, retornamos à diretora e ela diz que as salas estão mais tranquilas e demanda conversações com os professores. Com os profissionais o que aparece é um tensionamento nas relações entre eles: “não ser acolhida”, “agressão nas palavras dos colegas”, “falta de empatia”. E o corte na conversação ocorre depois da fala do professor que aponta que a agressão está entre os colegas professores. Podemos pensar aqui no significante “violência” dentro da instituição escolar. Numa segunda conversação o que emerge é “ficar ou não ficar” nesse lugar de educadores, sustentar uma “escolha” profissional. Submetidos pelo discurso da educação, sonham educar.
A aposta na palavra como algo que visa ir além, na tentativa de se deparar com aquilo que não faz sentido, abre uma via de acesso ao singular de cada um, fazendo com que os sujeitos possam se escutar e se surpreender com o que falam. Como nos aponta Roy[4], é dar oportunidade às crianças e adolescentes de se deslocarem nos discursos de dominação que buscam assujeitá-las.
[1] Texto apresentado na Jornada dos Núcleos de Pesquisa do ICPOL e do CIEN-SC, "Discursos: ressonâncias", realizada nos dias 18 e 19 de outubro de 2024, tendo como convidada e comentadora Beatriz Udenio (EOL/AMP). Integrantes do Laboratório Encontro de Saberes: Adriana F. Pereira; Marcia Frassão, Patrícia Laura Torriglia (Responsável pelo Laboratório) Soledad Torres; Valesca Lopes, Thiago Zandoná Chaves.
[2] Lei complementar nº 826, de 20 de abril de 2023. Disponível http://leis.alesc.sc.gov.br/html/2023/826_2023_lei_complementar.html
[3] BROWN, N. 5ª Jornada da EBP – Seção Sul. Discursos e Corpos: a causa do dizer. Argumento. 2024. https://ebp.org.br/sul/eventos/jornadas/5a-jornada-da-ebp-secao-sul-discursos-e-corpos-a-causa-do-dizer/5a-jornada-da-ebp-secao-sul-discursos-e-corpos-a-causa-do-dizer-argumento/
[4] ROY, D. Sonhos e fantasmas na criança. In: Sonhos e fantasmas na clínica com crianças e jovens. Uma trama entre o enigma e a fixação. Rayuela Publicación Virtual de la Nueva Red Cereda América. n. 10, novembro de 2023. Disponível em: <https://revistarayuela.com/pt/010/template.php?file=notas/sueno-y-fantasmas-en-el-nino.html>