O Furo na Língua e o Objecto

Waléria Nunes[1]

 
Danielle Lemes. Sem título.

Freud no desenvolvimento de sua teoria postula alguns objetos que viriam a satisfazer, ao menos parcialmente, as pulsões: o seio, na pulsão oral; as fezes, na pulsão anal; e o falo, na pulsão genital. Lacan posteriormente, acrescenta outros: o olhar, na pulsão escópica; e a voz, na pulsão invocante. São objetos que podem se complexificar em outros níveis de elaboração. O impulso em devorar, por exemplo, não se restringe ao seio e pode tomar outras variadas formas ao longo da vida de uma pessoa. Em todos esses objetos pulsionais referidos há algo em comum. Eles supostamente preencheriam um buraco no corpo – digo supostamente pois mesmo que algo entre ou saia desse buraco, esse espaço não é suturado. Entretanto, há um outro tipo de buraco não ligado ao corpo – ou talvez ligado em alguma medida que eu ainda não sei – e que eu gostaria de explorar, o buraco da linguagem.

Parto do pressuposto de que se escreve a partir do que não pode ser escrito. Há um limite ao ato de nomear que impulsiona a nomeação. Contudo, esse limite do dizer parece ser sempre ampliado na literatura ou em uma análise. O limite é tensionado de forma que ele é sempre posto mais adiante de onde estava antes. Uma experiência que ficou sem nome por anos, em algum momento, num estalar de dedos, pode ser dita, e assim o limite é colocado mais além. Ainda que o manejo desse limite seja o trabalho do escrever, sempre haverá um limite ao simbólico para indicar sua inconsistências, seus buracos ou furos.

Assim como não há um limite rígido e nomeável à linguagem, também não encontramos uma gênese à ela mesmo após séculos de estudos linguísticos. A procura pela origem da linguagem é um dos temas que mais provocaram delírios, organizados ou não, como nos ensina Lacan em “Nomes-do-pai”. Se na gênese da linguagem não há nada, se não há origem, a não ser pelo mito[2], podemos pensar que desde o que pode ser considerado o início da linguagem em que a primeira palavra teria sido dita, esta foi arbitrária e, por isso, constituída como uma metáfora. Assim, por mais que escavemos um buraco buscando um fundo de onde brotam as palavras, ele parece não ter fim, porque até “o céu descasca”[3], como diz o verso do poema de Lu Menezes.

Desse modo, se a linguagem é um buraco sem fundo e seus limites são sempre deslocáveis, esse espaço não é um buraco e sim um furo. Assim como os buracos do corpo que ao serem impossíveis de suturar quando se constituem em torno de objetos a são, na verdade, furos. No esquema criado por Marcus André Vieira conseguimos perceber com clareza a diferença entre o furo e o buraco, ou o saco. Vieira define o furo como “o que está em torno de uma reta infinita”.[4]

Fonte: Cogitações sobre o furo, Marcus André Vieira (1999)

Se ao nos deslocarmos pelo relevo aberto em torno de uma superfície e encontramos um fundo, temos um saco. Nesse sentido, encontrar um fundo no furo na linguagem, seria tamponar a abertura dada pela linguagem, seria inibir o dizer. Assim como fazer dos furos do corpo um saco, ou um buraco, seria inibir um corpo a continuar a gozar. Para Vieira, “apenas se os buracos do corpo funcionarem como uma abertura para o infinito o objeto poderá se situar no seu lugar de causa, sempre mais além”.[5] Pois, somente assim, os furos funcionam como articulação entre a morte e a vida e podem se constituir como lugar de mistério, horror, beleza e gozo.[6]

Entretanto, podemos perceber que há de um lado movimentos que tentam “preencher” furos do corpo, em que os objetos podem ser mais ou menos localizados, ainda que de alguma forma permaneçam obscuros. E de outro lado, há um movimento em “preencher” os furos da língua, com palavras obviamente, mas em que os objetos são ainda mais obscuros do que os corporais. A minha pergunta que baseia essa investigação é, portanto, quais são os objetos ou O objeto a que a linguagem, consciente de sua inconsistência, poderia ter como causa de sustentação e impulsionamento vivificante? É uma questão ampla e complexa, mas que procuro explorar como um exercício de pensamento.

Quando falamos em linguagem não falamos de um objeto qualquer que está no mundo, pois “as palavras não são coisas”, mas sim “pontes que tendemos às coisas”[7]. Poderíamos dizer uma espécie de espírito que dá vida as coisas para conseguirmos nos relacionarmos com elas. Entretanto, em alguns textos literários podemos encontrar um trabalho com a palavra que evidencia um outro tipo de uso do signo linguístico, um uso que lhe retira alma, por assim dizer. Falamos de um certo tipo de literatura que prescinde à narrativa e ao encadeamento de sentido, visando trabalhar a linguagem e seus impasses.

É o que podemos encontrar no conto “A carta roubada” de Edgar Allan Poe, por exemplo, que apesar de se tratar de uma narrativa breve, tem como central um objeto que se constitui não por seu conteúdo, mas por sua ausência. Lacan nos diz para “não confundir a carta/letra com o espírito”[8] e que “não podemos dizer da carta/letra roubada que, à semelhança de outros objetos, ela deva estar ou não estar em algum lugar, mas sim que, diferentemente deles, ela estará e não estará onde estiver, onde quer que vá”.[9] Desse modo, fica claro que o objeto carta serve como suporte sígnico que, apesar de nomeado, não serve como ponte de significação e, além disso, como o próprio adjetivo indica, fala de algo que foi retirado da posse de seu destinatário. Despida de sua característica linguística de atribuir sentido, a carta roubada aparece paradoxalmente como significante que vem denotar uma dupla ausência que move toda a trama.

Assim como a carta roubada, podemos encontrar outros nomes na literatura que indicam algo fugidio ou “inencontrável”: o negativo de Kafka, a parte maldita de Bataille, o inominável de Beckett, o Mal de Baudelaire, o vazio de Michaux, a terceira margem de Guimarães Rosa, Sveglia ou o objecto de Clarice Lispector, entre outros. Apesar de possuírem um corpo sonoro escolhidos não arbitrariamente pelos autores, são nomes que indicam algo que resiste à nomeação. Lacan diz, no Seminário 10, que se esse objeto “em sua função ele é realmente o que articulo, ou seja, o objeto definido como resto irredutível à simbolização no lugar do Outro, ainda assim ele depende desse Outro, pois, se não fosse assim como se constituiria?”.[10] Então, o que seria esse objeto constituído na língua e irredutível à ela? Não é qualquer objeto, para Clarice é mais um objecto, pois ele diz de “um objeto vivo – faço questão de que seja objecto e não objeto. O ‘c’ é o osso duro ... ele é um ser doido”.[11] Raul Antelo em, Objecto textual, diz:

Ora, o que é um objecto? ‘Escrever é’. ‘Morrer é’. O objecto é precário porque a realidade o é. Mas o objecto só se apresenta a nós através da palavra, ferindo-a como uma faísca. Uma iluminação. Objecto é um encontro inusitado e muito arcaico (ct) sem esquecer que, além do aspecto criativo ou inventivo (in venire), esse encontro está vinculado ao lance e ao bom augúrio.[12]

Portanto é um objeto que nomeado faz uma ferida na língua e que está sempre sujeito ao lance-de-dados, pois un coup de dés jamais n'abolira le hasard. [13]

Mas qual é a função que tem esse objeto para que a literatura, e a psicanálise, se ocupem em lançá-lo à sorte? Uma resposta a partir de Lacan é de que o

uso [da carta] para fins de poder só pode ser potencial, uma vez que ele não pode passar ao ato sem desvanecer-se imediatamente e que portanto a carta só existe como meio de poder pelas atribuições últimas do significante puro, quais sejam, prolongar seu desvio, para fazê-la chegar a quem de direito por uma passagem suplementar, isto é, por uma outra traição.[14]

Assim, o que pode significar a prolongação do desvio de um objetivo último se não a manutenção/vivificação do querer dizer? Além disso, a partir desse trecho de Lacan podemos extrair um movimento que faz o objeto: primeiro ele se constitui como ausência de conteúdo, ou de espírito; ainda assim, posteriormente, ele se perde daquele a quem foi destinado, numa primeira traição; e desse modo, somente a partir de uma segunda traição, Lacan diz uma passagem suplementar, é que ele pode chegar a quem deveria chegar. Em outras palavras, elevando a abstração desse movimento, poderíamos dizer que a partir da noção da inconsistência da linguagem, desde a criação de um objeto negativizado, pode-se negar duplamente a linguagem para aceder a uma afirmação Outra. É o que parece pensar Raul Antelo sobre o objecto clariceano, o qual:

através de um processo que não pretende restaurar a verdade mas reconstruir uma ação ou energia agente, essa écriture vive, enfim, nos levaria, contudo, a liberar, na memória dessa mesma escritura, o objecto que com afinco se buscou como objeto inencontrável e que, no entanto, retornou, implacavelmente, na realidade, enquanto Outro do Outro, quer dizer, enquanto objecto.[15] 

Se o Outro do Outro não existe, é a afirmação da própria impossibilidade que permite que esse objecto vazio, ou “seco como champagne ultra seco” nas palavras de Clarice, mantenha o dito aberto e funcione como ponto de atravessamento entre a vida e a morte, como objeto de causa para o gozo da língua.


[1] Trabalho elaborado como requisito do Curso Psicanálise de Orientação Lacaniana, do ICPOL-SC, com orientação de Luis Francisco Camargo (EBP/AMP). Florianópolis, dezembro de 2021.

[2] DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. Trad. de Joaquim Torres Costa, Antônio M.
Magalhães. Campinas, SP: Papirus, 1991.

[3] MENEZES, Lu. Labor de sondar: poesia reunida [1977-2022]. São Paulo: Círculo de poemas, 2022.

[4] VIEIRA, Marcus André. Cogitações sobre o furo. Ágora estudos em Teoria Psicanalítica, Rio de Janeiro, Vol II n. 2, jul-dez 1999. p. 47.

[5] Ibidem, p. 47.

[6] Ibidem, p.47.

[7] ANTELO, Raul. Objecto textual. São Paulo: Memorial de América Latina, 1997. p. 36.

[8] LACAN, Jacques. Seminário sobre ‘A carta roubada’. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 26.

[9] Ibidem, p. 27.

[10] LACAN, Jacques. O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 359.

[11] LISPECTOR. Clarice. História de coisa. In: Contos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1974. p. 2.

[12] ANTELO, Raul. Objecto textual. São Paulo: Memorial de América Latina, 1997. p. 25.

[13] MALLARMÉ, Sthéphane. Um lance de dados. Organização e Tradução de Álvaro Falleiros. Cotia: Ateliê Editorial, 2013.

[14] LACAN, Jacques. Seminário sobre ‘A carta roubada’. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 36.

[15] ANTELO, Raul. Objecto textual. São Paulo: Memorial de América Latina, 1997. p. 37.


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