Núcleo Nipta

  Discursos, Objetos e Adições[1]


Danielle Lemes. Tigre de papel.


A “espiral aditiva, própria do mundo contemporâneo,

deve, contudo, ser considerada como uma tendência
decorrente da promoção do gozo pelo mercado, que
opera às expensas de ideais, de figuras paternas e
de toda forma de autoridade do mestre moderno.”[2]


Neste ano, a pesquisa do núcleo foi direcionada com base em algumas questões que surgiram sobre os manejos possíveis do analista, perante ao empuxo às adicções e ao sem limite, configurando uma clínica caracterizada não somente pelos usos desregrados de substâncias, mas também pelo empuxo à morte.

O tempo histórico dito contemporâneo tem sido caracterizado pela queda do Nome-do-pai e pela queda dos ideais modernos, fazendo com que a sociedade e os indivíduos que a compõem estejam vivendo um processo turbulento e confuso de modificação dos laços sociais e das formas de habitar a vida, ocasionando em novos modos de gozo e indivíduos desbussolados.

Efeitos de discurso

J. Santiago, no seu livro “A Droga do Toxicômano, uma parceria cínica na era da ciência”, realizou uma pesquisa minuciosa e destacou que Freud, desde “Além do princípio do prazer” (1920), constata a resistência de um sintoma em ceder apenas pela decifração do material simbólico. Para ele “a ciência desempenhará sempre o papel de tribunal da razão [...] como instância apta para legitimar os conceitos e fundamentos últimos da psicanálise”, impregnado com esse ideal de elevar a psicanálise à categoria de um saber científico.

Lacan muda a perspectiva no que se refere à relação entre a psicanálise e a ciência. O saber científico é questionado a partir do campo suplementar do gozo, permitindo situar a posição subjetiva do toxicômano no próprio impacto das incidências do discurso da ciência sobre o corpo. A partir da tese de que o saber é meio de gozo, Lacan irá complexificar o conceito de sintoma, outrora elaborado por Freud, onde este encarnaria a discordância fundamental entre o gozo e aquilo que o revela como saber, edificando o sintoma a uma construção de sobreposições de significantes extraídos do real, enquanto uma verdade que se faz presente na falha do saber. Desta forma, se “pôde postular a toxicomania como um efeito de discurso [...] como aquilo que resulta do encontro do discurso da ciência com a dimensão abolida desse discurso, a saber, o gozo”[3].

A contribuição lacaniana torna possível inscrever o recurso metódico à droga como “uma construção que permite ao sujeito tolerar os efeitos imprevisíveis e angustiantes do gozo do corpo”.[4] Com esta nova perspectiva podemos pensar em diferentes manobras de limitação dos efeitos do gozo, com o uso dos gadgets (resquícios da civilização da ciência) como objetos capturados nas margens do Outro, concebido como lugar dos significantes que, muitas vezes, funcionam como referência para os ideais e valores que orientam a vida dos indivíduos. Desta forma, poderíamos dizer que um dos efeitos do discurso da ciência na contemporaneidade é a fragilização, o enfraquecimento dos ideais que operavam como um orientador e como um limite ao gozo?

Os tratamentos do gozo produzidos pela ciência aliada ao capital excluem a dimensão do gozo singular e da transferência, sendo esta a que pode fazer limite no marco de um discurso qualquer.  Nestes tratamentos protocolados, com categorizações, instruções, que tem como objetivos a desintoxicação, abstinência ou a redução de danos, se evita a incidência do fator humano e se desinveste no valor da palavra dos profissionais, prejudicando a escuta singularizada que pode permitir compreender os diferentes usos e funções das drogas para cada sujeito e, inclusive, as variações dos usos num mesmo sujeito. Assim, o fenômeno toxicômano é concebido desde uma visão normativa de um diagnóstico que torna a droga um dos responsáveis por grande parte dos flagelos, a droga como agente nocivo, a ser erradicado, na conhecida “Luta contra as drogas”. A supremacia dessa concepção  repreensível, inclusive policial, da droga marca a convergência dos saberes médico e jurídico, o que deve ser concebido como reflexo do que se pode designar démarche segregativa da ciência”[5]


Mais de gozo do mercado

Lacan, em Radiofonia, se antecipou sobre o contemporâneo sugerindo a “ascensão ao zênite social do objeto que chamo pequeno (a)”[6], sendo um dos aspectos que marcam, impulsionam o mais-gozar sem limites e insaciável, próprio das adições/toxicomanias e resultado da incidência extensiva do discurso capitalista na atualidade. Ainda sobre a subida do pequeno a ao zênite social, Miller no seu discurso de Comandatuba, reflete que essa ascensão é

resultado de um forçamento, de uma passagem ao mais além dos limites descobertos por Freud, à sua maneira, precisamente em um mais além. Elemento intenso que permite toda noção de medida, indo sempre em direção ao mais, em direção ao sem medida, seguindo um ciclo que não é o das estações, mas sim o de uma renovação acelerada, de uma inovação frenética.”[7]

O discurso capitalista não dá espaço para a falta - escrita formulada por Lacan, que se trata de um discurso que exclui a impossibilidade -, prometendo a satisfação instantânea do gozo pela produção em larga escala de objetos, o que destaca a dimensão de mais-de-gozar do objeto a, limitando a concepção primeira de Lacan do objeto causa de desejo.    

“O mais-de-gozar ascendeu ao lugar dominante. Ora, o mais-de-gozar é correlativo ao que chamarei, para falar como Damazzio – eu me cultivo! -: um estado do corpo próprio e, como tal, o mais-de-gozar é assexuado. Ele comanda, mas o que? Ele não comanda um "isso funciona", mas sim um "isso falha"”.[8]

Esse “isso falha”, esse desencontro sempre encontrado no circuito do mais-de-gozar dominante e inerente ao discurso capitalista e do capitalismo com sua produção incessantes de objetos rapidamente obsoletos, fazem do sujeito adicto/toxicômano o consumidor ideal, pois convidam a força das pulsões e da iteração “aditiva”, que está na origem do sintoma, a um gozo sem limites, que Jésus Santiago denomina de empuxo às adições.


A clínica e seus possíveis

Como o analista pode operar e desde qual posição quando há uma relação compulsiva do sujeito com a droga? Sobretudo quando na maioria destes casos não se lhe atribui um saber, como pensar a transferência nestes casos quando não funciona a complementação pelo ser de saber do analista? 

Nos deparamos com a orientação que Lacan denomina “o analista sinthoma” e que explica mediante a ideia de “ajuda contra”, a partir daí introduzimos “os manejos possíveis”. Aqui o analista se estrutura a partir da refratariedade do sintoma à complementação pelo saber e apresentando a mesma consistência do furo que se depreende do real ininterpretável, no furo que consiste na inexistência do Outro do Outro. Assim a “ajuda contra” apontaria ao lado herético da mulher - causa de desejo -, pois “o feminino revela-se a encarnação do que gera a reviravolta na função do analista como $SS, complemento do sintoma.”[9]

O discurso analítico, via transferência, visa pensar em modos para que a perda seja reintroduzida e apaziguada. Ele se oferece para elevar à dignidade de um sintoma aquilo que empurra o corpo e assume várias formas que perturbam o funcionamento deste. Será então interessante pensarmos que o ato sob transferência poderia ser uma das respostas da psicanálise ao limite da capacidade do simbólico, ao problema do gozo?

Uma orientação que está embasada no próprio ato de se prescindir da suposição do Nome do pai, e obedecendo ao regime do Não-todo, fazendo valer a função de enodamento do analista nas toxicomanias, como chance de agir sobre o gozo à deriva e sem limites destas formas sintomáticas contemporâneas.

Então, sem perda, sem laço, sem palavra, o corpo passaria ao primeiro plano como limite? Neste anti-discurso capitalista, ao rechaçar a cessão de gozo, se perde a possibilidade de responder tanto por parte do agente como pelo sujeito, se perde assim o sujeito?

“Faz-se laço quando se cede o gozo: por respeito, por amor, por saber, por desejo... Concretamente, os discursos organizam modos de ceder o gozo. Os diferentes modos de resolver a impossibilidade configuram diferentes maneiras de aceitar os limites da linguagem. [...] Mas no discurso capitalista - e no discurso científico quando aliado a ele - não há possibilidade de discurso porque não se pede para ceder o gozo, mas para ceder ao gozo. Promete-se que não é necessário ter menos gozo para resolver, que não há nada a perder, pelo contrário, promete-se um ganho de gozo. Trata-se ao gozo com mais gozo. O mercado fornece os objetos - e assim o saber, o amor e a política, por exemplo, tornam-se objetos de consumo. O gozo entendido desta forma pressupõe uma satisfação igual para todos; não se trata de um gozo singular, tal como a psicanálise o entende. A experiência de aceleração e excitação crescente do nosso tempo é fruto desta impossibilidade de discurso: o circuito de satisfação é contínuo e a tensão só é descarregada ao atingir os limites do corpo, incluindo a possibilidade de morrer”[10]. (Tradução livre do núcleo). 

Aceitamos com muito entusiasmo este convite realizado pela diretoria dos núcleos para uma conversação, pois é um convite que pode funcionar como barra a este pseudo discurso capitalista que não dá margem ao não sabido e ao não decidido. Neste marco cedemos algumas construções incipientes e várias perguntas para promover uma conversação e assim passarmos “Da droga à palavra”, segundo nos orienta o próximo TYA Brasil deste ano. 


[1] Texto escrito pelo Núcleo de Investigação em Toxicomania e Alcoolismo – NIPTA, para a Jornada de Núcleos do ICPOL em 2024. Texto apresentado na Jornada dos Núcleos de Pesquisa do ICPOL e do CIEN-SC, "Discursos: ressonâncias", realizada nos dias 18 e 19 de outubro de 2024, tendo como convidada e comentadora Beatriz Udenio (EOL/AMP). Texto elaborado por Leonardo Mendonça e Mauro Agosti, coordenadores do NIPTA. 

[2] SANTIAGO, Jésus. A droga do toxicômano: uma parceria cínica na era da ciência. 2ª ed. rev. – Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017. p. 231.

[3] Idem, p. 20

[4] Idem, p. 19

[5] SANTIAGO, Jésus. A droga do toxicômano: uma parceria cínica na era da ciência. 2ª ed. rev. – Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017. p. 13

[6] LACAN, Jacques. Radiofonia [1970]. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 411.

[7] MILLER, J. A. (2004). Uma fantasia. [Conferência de Jacques-Alain Miller em Comandatuba]. Oitavo Congresso da Associação Mundial de Psicanálise AMP, A Ordem Simbólica no Século XXI. Disponível em: https://2012.congresoamp.com/pt/template.php?file=Textos/Conferencia-de-Jacques-Alain-Miller-en-Comandatuba.html

[8] Idem.

[9] SANTIAGO, Jésus. A droga do toxicômano: uma parceria cínica na era da ciência. 2ª ed. rev. – Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017. p.15.

[10] Teixidó Araceli- Ceder el goce o ceder al goce: discurso capitalista y acto analítico. Revista Enlaces An̈o 24, N° 28, septiembre 2022. p. 196

 


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