NÚCLEO PANDORGA[1]
Da fantasia em Freud ao fantasma em Lacan: Percursos de pesquisa e suas ressonâncias
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Danielle Lemes. Sem título.
1. Uma pesquisa que se faz em rede: Nova Rede Cereda Brasil no biênio 2023-2025
O Núcleo Pandorga é um coletivo que investiga a clínica com crianças e adolescentes em suas complexidades e as possíveis incidências do discurso analítico. Animados por uma fagulha de desejo de saber um pouco mais sobre a clínica com crianças e adolescentes, diferentes pessoas com suas diferentes trajetórias profissionais e na psicanálise chegam no Pandorga. Tão logo, são instigadas a trazerem também seus pontos e olhares singulares de pesquisa. Do coletivo ao singular, nossa pesquisa também passa da clínica, às instituições e à cultura, tendo como eixo central as crianças e os adolescentes na contemporaneidade.
Falamos da clínica com crianças e adolescentes em suas complexidades, pois há múltiplos discursos que incidem sobre as infâncias e adolescências ao longo da história. O surgimento das categorias “criança” e “adolescente” na modernidade e os discursos da família, da pedagogia, da medicina e dos transtornos mentais são exemplos de complexidades nas quais estamos inseridos. Daniel Roy (2023)[2] afirma a existência de um “mercado dos discursos de nosso tempo”, discursos esses que podem ter efeitos de dominação e assujeitamento de crianças e adolescentes. Frente a isso, o discurso analítico pode trazer algo novo, pelo qual somos responsáveis (ROY, 2023).
Assim, ao final de 2023, a Rede Cereda (Centro de Estudos e Investigação sobre a Criança no Discurso Analítico) sugeriu um novo tema de pesquisa: “Sonhos e fantasma na criança” a partir de um texto de orientação de Daniel Roy.
2. A pesquisa do Núcleo Pandorga: Da fantasia em Freud ao fantasma em Lacan
Da conclusão da pesquisa sobre os “pais exasperados - crianças terríveis” e a temática da família em nosso tempo, como lançaríamos um novo movimento de pesquisa sobre temas tão conceituais e clínicos ao mesmo tempo? Daniel Roy (2023) sinaliza a importância de seguirmos as indicações de Lacan como um convite a nos formarmos na lógica do fantasma, especialmente “explorando com cada criança os significantes-mestres que fazem dela sujeito” (s/p).
Assim, “fantasma” e “sonho” são categorias conceituais que podem implicar construções ficcionais e certos refúgios para crianças e adolescentes. Sobre o sonho, ele permanece como “via régia” enquanto formação do inconsciente para o discurso analítico, como já sugeria Freud[3]. Acerca do fantasma, citando Lacan no Seminário 14[4], Roy (2023) afirma que há duas características primordiais: a presença de um objeto a e “nada mais do que aquilo que engendra o sujeito como $, a saber, uma frase” (s/p). Segundo Miller (1998)[5], o fantasma “é como uma máquina para transformar o gozo em prazer”. Prazer esse que Freud já sinalizava em “O poeta e o fantasiar”[6]: a fantasia tem a finalidade de realização de desejo.
Fantasma e fantasia se imbricam e se tornam questões de pesquisa para o Núcleo: da fantasia em Freud ao fantasma em Lacan. Assim, fomos percebendo algumas pistas na pesquisa: partindo do desarranjo pulsional[7] do terrível das crianças e da exasperação dos pais, é importante trabalharmos a construção do fantasma na criança em análise e a escuta dos sonhos como elaborações de um inconsciente em formação. Além disso, a exasperação dos pais evoca um primeiro discurso de tentativa de dominação que encontramos na clínica: a fantasia de dominar a criança ou o adolescente como um objeto-dejeto que, muitas vezes, marca o início de um processo analítico de uma criança ou um adolescente.
Nesse ponto, Daniel Roy (2023) é enfático:
Trata-se efetivamente de forjar as ferramentas para nos opormos ao despejo das crianças do mundo dos semblantes [...] pelas normas e avaliações, despejo pelas identidades impostas, despejo pelo desprezo à fala da criança, na medida em que ela se tece entre enigma e fixação de gozo.
Nesse sentido, uma análise pode resgatar a dignidade da criança enquanto um sujeito que, mesmo que barrado, é digno de direitos.
Uma outra questão que perpassou a pesquisa do Núcleo ao longo de 2024 foi a tradução dos termos “fantasia” e “fantasma”, além de “devaneios”, “sonhos diurnos” e “fantasia consciente”. A tradutora Teresinha N. M. Prado[8] descreve o termo “fantasma” como o enlace fundamental representado pelo matema $<>a, também traduzido como fantasia fundamental. Esse ponto determinou a escolha do percurso de leitura que o Núcleo Pandorga faria durante o primeiro semestre de 2024, isto é, um retorno aos textos de Freud. Com o convidado Pedro Heliodoro Tavares (psicanalista e germanista), ao final do primeiro semestre, levamos em consideração o intraduzível entre os termos “fantasia” e “fantasma”.
No caso do Pequeno Hans[9], vislumbramos a travessia da criança em elaborar os restos de gozo e excitações sexuais derivados do Complexo de Édipo e da castração. Em Hans, partindo de dois sonhos enigmáticos que se tornam angústia, há o desenvolvimento de sua fobia. A criança cria o neologismo “xixizador” para tentar dar conta do indizível da diferença sexual e elabora consecutivas fantasias no sentido de realizar o desejo de “fazer dengo”[10] com a mamãe, procurando retirar o papai de cena. Um pai que não só não sai de cena, como também conduz a análise do menino com a supervisão de Freud.
Em “Bate-se numa criança: contribuição para o estudo das perversões sexuais (1919)”[11], o além do princípio do prazer está muito bem colocado - ponto este que é uma questão atual de nossa pesquisa: há um gozo para além da realização de desejo na fantasia? Com a leitura do caso do Homem dos Lobos, no momento atual de pesquisa do Núcleo, estudamos o caso de um adulto que narra seu sonho infantil e as tentativas de Freud em nomear uma “cena primária” como fundante da divisão subjetiva.
Freud enuncia sobre a preponderância da fantasia no que dizem as crianças e que isto não faz este dizer arbitrário ou não confiável. O fantasiar e as brincadeiras infantis, assim como os sonhos, são guiados por desejos e possíveis restos. Retomando Daniel Roy (2023), se levarmos em consideração as falas da criança como tendo o mesmo valor que os significantes do sonho, podemos também constituir o valor de fazer o sujeito nascer ao mesmo tempo, para a realidade e para o desejo.
[1] Texto apresentado na Jornada dos Núcleos de Pesquisa do ICPOL e do CIEN-SC, "Discursos: ressonâncias", realizada nos dias 18 e 19 de outubro de 2024, tendo como convidada e comentadora Beatriz Udenio (EOL/AMP). Coordenação do Núcleo: Maria Luiza Rovaris Cidade e Marcia Frassão; Comissão de Trabalho do Núcleo: Flávio Desgranges, Luciana Zica, Valesca Lopes, Vicky Martins e Coordenação do mesmo. Demais participantes: Carolina Maia Scofield, Carolina Noto, Daniella Pichetti, Eloise Colombo, Gustavo Martins, Fernanda Cunha, Jussara Jovita (EBP/AMP), Manoela de Borba, Marcos Gorgatti, Patrícia Laura Torriglia e Soledad Torres.
[2] ROY, D. Sonhos e fantasmas na criança. In: Rayuela- Publicação virtual da Nova Rede Cereda América, nº 10, nov. 2023. Disponível em: <https://revistarayuela.com/pt/010/template.php?file=notas/suenos-y-fantasmas-en-el-nino.html>.
[3] Freud S. Cinco lições de Psicanálise. In: FREUD, S. Obras Completas, V. XI, Rio de Janeiro, IMAGO, 1970, p. 32.
[4] LACAN, J. O seminário, livro 14: A lógica do fantasma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2024.
[5] MILLER, J. A. Duas dimensões clínicas: sintoma e fantasia. Parte I. In: MILLER, J. A. Percurso de Lacan: Uma introdução. Zahar: Rio de Janeiro, 1988. p. 143.
[6] FREUD, S. O poeta e o fantasiar [1908]. In: FREUD, S. Arte, Literatura e os artistas. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.
[7] Termo utilizado por Nohemi Brown (EBP/AMP e coordenadora da Rede Cereda) em conversas com os Núcleos sobre as pesquisas.
[8] Nota de rodapé da tradução do texto de orientação de Daniel Roy: “Sonho e fantasma na criança”.
[9] FREUD, Sigmund. Análise da fobia de um garoto de 5 anos (caso Pequeno Hans) [1909]. In: FREUD, S. Histórias Clínicas. Cinco casos paradigmáticos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.
[10] Expressão utilizada pela tradução de Freud da Editora Autêntica, a mais recente no Brasil. “Fazer dengo” pode implicar em buscar aconchego, alento, acolhimento.
[11] FREUD, S. Bate-se numa criança: contribuições para o estudo da origem das perversões sexuais [1919]. In: FREUD, S. Neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.