Ateliê de leitura dos textos freudianos
As pulsões: entre percurso e destino[1].
Danielle Lemes. A Mágoa Mortal.
“Viver é uma espécie de loucura que a morte faz”
Um sopro de vida - Clarice Lispector
1. Perspectiva do conceito: uma estranha força
O tema de pesquisa escolhido pelo Ateliê de leitura de textos freudianos deste ano foi o conceito de pulsão. Partindo de A pulsão e seus destinos (1915) ao Além do princípio do prazer (1920), construímos as leituras seguindo o desenvolvimento desse conceito limítrofe, dessa montagem, ou ainda, dessa mitologia freudiana que chamamos pulsão.
Em 1964 Lacan inicia um novo retorno a Freud isolando os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Recém “excomungado” da IPA, ele diz: estou aqui, na postura que é a minha, para sempre introduzir essa mesma questão – o que é a psicanálise?[2]. Dentre os quatro conceitos que ele escolhe para responder essa questão, a pulsão seria o de acesso mais difícil e, por isso, o último a ser trabalhado naquela ocasião, sem que minimizemos o lado movente, senão escabroso, da aproximação desse conceito[3].
Assim como Lacan, Freud também teve seu momento de sistematizar a teoria, perguntando-se sobre a cientificidade da psicanálise, quando inicia seu projeto de um conjunto de textos chamados “metapsicológicos”. Freud trabalhava incessantemente nesse projeto enquanto a Guerra devastava a Europa, esvaziava sua clínica, e mantinha três de seus filhos lutando nas trincheiras.
Ele escreve A pulsão e seus destinos como texto de abertura de sua Metapsicologia, como uma espécie de prólogo. A pulsão ganha um estatuto originário, antecedendo a própria formação do inconsciente, e o recalque é apresentado nesse texto como um dos destinos pulsionais.
Conceito limítrofe situado na fronteira entre o somático e o mental, a pulsão tem sua fonte no corpo e seu objeto no registro psíquico, ou seja, ela opera como um estímulo para o psíquico[4], como uma medida da exigência de trabalho imposta ao anímico em decorrência de sua relação com o corporal[5]. É uma força constante em busca de satisfação e seu objeto é o componente mais flexível dessa montagem. Seu circuito pode se constituir com qualquer objeto, entretanto, a partir do momento que este objeto entra no circuito, ele já não é mais um objeto qualquer. As experiências de satisfação deixam marcas, e, assim, a problemática neurótica da fixação se apresenta como um limite à plasticidade pulsional[6].
A ideia de limite aparece não só na definição do próprio conceito, mas também no movimento freudiano ao partir da biologia para afastar-se, aos poucos, construindo a especificidade da Psicanálise. Em Três ensaios sobre a sexualidade (1905), Freud afirma que uma das características essenciais da manifestação sexual infantil é que ela surge apoiando-se numa das funções vitais do corpo (p. 87). A pulsão pode ser pensada como uma perversão do instinto, como uma desnaturalização. Nesse sentido, a relação da pulsão (Trieb) com o instinto (lnstinkt) pode ser concebida através do termo Anlehnung (apoio). Apoio designa a relação que as pulsões sexuais mantêm originalmente com as funções vitais orgânicas que lhes fornecem uma fonte somática.
Nos parece especialmente relevante que, no título do texto em que se dispõe a definir o conceito de pulsão, esteja enfatizada a expressão “seus destinos”. Assim, os destinos, como defesas, são intrínsecos ao conceito, justamente por isso uma das definições de pulsão é a de uma medida de exigência de trabalho a ser realizada pelo psiquismo. Dos quatro destinos elencados, apenas dois são elaborados nesse texto. A reversão, o retorno à própria pessoa e o recalque são discutidos nos textos metapsicológicos, e a sublimação, último destino citado, é apontada por Freud como algo que ele não cogitou tratar ali.
Representante psíquico de estímulos que vêm do interior do corpo, força que busca o prazer do órgão, a noção freudiana de Trieb se define como um estímulo perturbador ao equilíbrio do sistema, mas do qual é impossível fugir. Uma simples ação motora/reflexa, como cerrar as pálpebras, pode permitir ao bebê se evadir de um estímulo externo perturbador, mas como poderia simplesmente se evadir da força que o impele a “olhar e ser olhado” - ou, melhor dizendo, porque a pulsão é sempre ativa -, a “olhar e fazer-se olhar”?
2. Disciplina do comentário: repetir, ainda.
A teoria das pulsões elaborada no começo da Grande Guerra vai ser revisada e reformulada ao fim dela. O retorno dos soldados desafiava a teoria a partir de uma nova gramática de sofrimento. Além do princípio do prazer (1920), que marca uma revolução na psicanálise, é escrito de forma descontínua, interrompido pela criação de outros importantes ensaios e por dramáticas circunstâncias subjetivas (a morte de sua filha Sophie vítima da gripe espanhola) e sociais. Freud está trabalhando textos como Bate-se numa criança (1918) e O infamiliar (1919), que têm em comum o interesse por movimentos pulsionais que se desviam do princípio do prazer. Bate-se numa criança é um ensaio sobre a origem do sadismo e do masoquismo e mostra uma aproximação da formulação da pulsão de morte, enquanto O infamiliar tematiza a inquietante estranheza que nos habita. Parece que o que está em jogo para Freud é a observação de que o ser humano não busca apenas o seu próprio Bem - como comenta Lacan em seu seminário sobre a ética[7]-, pois é constantemente arrastado, impulsionado (Trieb) para um mais além.
Em Além do princípio do prazer há uma nova teoria que se funda em observações clínicas, mas também em especulações biológicas e filosóficas sobre a Vida e a Morte: uma dose de Darwin, uma dose de Schopenhauer, e seremos então compelidos a dizer que o objetivo de toda a vida é a morte[8]. Consiste em propor que a morte também pulsa em nós como um estímulo interno que busca satisfação. A partir da manifestação clínica dos sonhos como repetição do traumático, Freud reformula a tese central apresentada em 1900 que definia os sonhos como a realização de desejo inconsciente: a função do sonho, entre muitas outras coisas, foi abalada e desviada de seus propósitos e precisamos então, desde já, nos lembrar das enigmáticas tendências masoquistas do Eu[9]. O que se inaugura é pensar o fundamental papel da repetição na busca por uma satisfação que não é da ordem do desejo. Com o relato de uma brincadeira infantil (fort-da), Freud demonstra como a encenação ali forjada representava um trabalho psíquico para aquela criança, capaz então de uma “realização cultural” pela via de uma “renúncia pulsional”. Pelo princípio do prazer, a criança repete buscando elaboração e apoderamento da experiência, busca contornar e "superar" o sofrimento diante do desamparo. Mas agora Freud percebe algo a mais, um além: a parte mais repetida pela criança na brincadeira observada não é a encenação da presença, mas sim da ausência da mãe.
Assim, além do princípio do prazer está a compulsão à repetição. Diferente do que nos trouxe em Repetir, recordar e elaborar (1914) - Freud apresenta aqui uma nova forma de compreender a repetição, relacionando-a com uma insistência que nos dá pistas de um ingovernável que se presentifica no modo de lidar com a vida. Nessa nova concepção, as forças de Eros, as pulsões mantenedoras da Vida e suas montagens, seus destinos, suas fixações, são nossos caminhos para a Morte. Em última instância, isso significa que o que resta é que o organismo só quer morrer à sua maneira[10].
3. A lógica do tratamento: a sublimação
É esse o sentido da sublimação com que os psicanalistas ainda estão aturdidos, pelo fato de, ao lhes legar esse termo, Freud ter ficado de bico calado. Advertindo-os apenas de que a satisfação que ela traz não deve ser tida como ilusória.[11]
Existe tratamento para a pulsão? Não é ela mesmo, em sua condição de montagem, um tratamento para o real?
Quando pedimos que os participantes do ateliê trouxessem algo escrito sobre o tema das pulsões para compartilhar com o grupo, Ana Carla trouxe uma citação de Caetano Veloso que nos pareceu preciosa: Por isso uma força me leva a cantar/ Por isso essa força estranha/ Por isso é que eu canto/ Não posso parar. A partir daí, estava colocada para nós a questão da sublimação, o destino pulsional sobre qual Freud ficou de “bico calado”. De fato, ele não deixou uma formalização desse conceito, mas já em 1908, em Moral Sexual Civilizada e Doença Nervosa Moderna, a sublimação aparece como uma modificação da meta da pulsão que permitiria sua inscrição no registro da cultura. Laplanche & Pontalis assim delimitam o conceito:
Freud descreveu como atividade de sublimação principalmente a atividade artística e a investigação intelectual. Diz-se que uma pulsão foi sublimada na medida em que ela é desviada para uma nova meta não sexual e visa a objetos socialmente valorizados. (Laplanche & Pontalis, 1998, p. 638)
Em O mal-estar na Cultura (1930), no momento em que Freud reflete sobre formas de “afastar o sofrimento” como busca inexorável a que o princípio do prazer nos impele - apesar de sua impossibilidade -, ele nos fala do deslocamento das metas pulsionais para o trabalho psíquico e intelectual como possibilidade de uma particular satisfação prazerosa: a alegria do artista ao criar ou do pesquisador na solução de problemas e na apreensão da verdade tem uma qualidade especial[12]. A questão da “felicidade” como colocada em 1930 está bastante relacionada às possibilidades do sujeito - e da cultura - em dar destino às pulsões.
A formulação mais conhecida que temos para o conceito de sublimação é a fórmula de Lacan: elevar o objeto à dignidade da Coisa[13]. O verbo escolhido por Lacan mantém a ideia que lemos em Freud de sublimação com “elevação”. A pulsão, força sexual e mortífera, pode facilmente encontrar satisfações grosseiras[14], ou transformar-se em sintoma pela via do recalque.
Miller propõe que pensemos a clínica contemporânea a partir do conceito lacaniano de “escabelo”. Escabelo seria a sublimação entrecruzada com o narcisismo[15], em que o que o sujeito eleva à dignidade da Coisa é ele mesmo. Um passo bem adiante em relação à imagem do ideal de Freud de um pesquisador em busca da verdade. De qualquer forma, nos interessa a ideia de Miller de “traduzir, trair e tracionar”[16] o pensamento de Freud - sempre com seus textos à mão - de forma a mantê-lo atual. É dessa orientação que nos perguntamos: qual a operatividade clínica do conceito de sublimação hoje? Como podemos pensar as manifestações contemporâneas da sublimação, na era do falasser, em que estamos um tanto afastados dos elevados ideais culturais freudianos?
A sublimação é uma criação de Freud, e parece ter sido uma aposta, uma possibilidade levada às últimas consequências na relação entre sua vida e sua dedicação à escrita. O que podemos considerar atualmente na cultura como “objetos socialmente valorizados”? Consideramos poder pensar também a sublimação como um saber fazer, um tipo de satisfação singular do Um-sozinho, quando Freud nos diz que “o destino não pode fazer muito contra o indivíduo” que encontra essa via de satisfação[17], e que o sujeito que consegue criar algo a partir de seus próprios pensamentos e processos psíquicos garante para si algum quinhão de prazer em seu destino.
Se o que chamamos manifestações da vida são apenas “rodeios para a morte”, como Freud nos ensina em Além do princípio do prazer, a ideia de sublimação surge como a de construção de alguma beleza nesses rodeios. Uma possibilidade de criação frente à repetição. “Nascer, crescer, se reproduzir e morrer” é uma definição clássica de Vida. Mas o ser falante, sendo um ser para a morte, que sabe que vai morrer, encontra no campo do Outro infinitas formas de reproduzir-se. Como lembra Freud: não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo[18]. Apostar na sublimação seria apostar que essa força mortífera que nos habita também nos leva a buscar caminhos de bem dizer. Talvez também por isso estamos aqui, recolhendo efeitos do trabalho de uma força estranha que nos leva a falar, escrever e participar de ateliês de leitura.
[1] Trabalho escrito por Juliana Rego Silva e Paula Lermen, coordenadoras do Ateliê de leitura de textos freudianos. O ateliê é uma atividade aberta com um fluxo variável de participantes. As temáticas que aqui constam são fruto da leitura e das discussões realizadas nos encontros durante o ano de 2024. O texto foi elaborado para apresentação no “Colóquio Seminário dos Ateliês de Leitura do ICPOL: Pulsão e presença do analista”, tendo como convidada e comentadora Maria do Carmo Dias Batista (AME - EBP/AMP), realizado em 30/11/2024.
[2] LACAN, J. O seminário, livro 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 11.
[3] Ibidem, p. 27.
[4] FREUD, S. As pulsões e seus destinos. Belo Horizonte: Autêntica, 2019, p. 17.
[5] Ibidem, p. 25.
[6] Ibidem, p. 27.
[7] LACAN, J. O seminário, livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
[8] FREUD, S. (1920) Além do princípio do prazer. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. p. 137
[9] Ibidem, p. 75,
[10] Ibidem, p. 139.
[11] LACAN, J. Homenagem a Marguerite Duras. In: Outros escritos. RJ: Zahar, 2003, p. 203.
[12] FREUD, S. O mal-estar na civilização. São Paulo: Cia das Letras, 2010, p. 35.
[13]LACAN, J. (1959-60/1988). O Seminário, livro VII: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 137.
[14] FREUD, S. Ibidem
[15] MILLER, J-A. O inconsciente e o corpo falante. Disponível em: https://www.wapol.org/pt/articulos/Template.asp?intTipoPagina=4&intPublicacion=13&intEdicion=9&intIdiomaPublicacion=9&intArticulo=2742&intIdiomaArticulo=9 Acesso em: 18/10/2024
[16]MIILLER, J-A. Lacan que enseña. In: BRODSKY, G. Los psicoanalistas y el deseo de enseñar. Olivos: Grama Ed., 2023.
[17] FREUD, S. Ibidem, p. 35.
[18] Ibidem, p. 103.