Aproximações sobre os complexos de Édipo e de castração nas meninas
 

Cristiane Quimelli Snoeijer1

 
Danielle Lemes. Estudando as sombras.

Quando se aborda o tema do feminino em psicanálise, especialmente quando nos atemos aos textos freudianos, são comuns as colocações sobre as dificuldades de Freud para desvendar a feminilidade. Como consequência do afastamento de uma abordagem topológica do aparelho psíquico e o posterior desenvolvimento de uma nova teoria a qual chamamos de segunda tópica, Freud dedicou-se ao tema em uma série de textos escritos entre os anos de 1923 e 1933. No entanto, apenas dois anos antes de sua morte, ele ainda afirmaria sua incapacidade de compreender o grande enigma da sexualidade. Ainda assim é possível extrair uma série de conceitos e aproximações importantíssimos sobre o tema, os quais serão retomados, posteriormente por Lacan. A pergunta que norteia o presente trabalho gira em torno destas questões, especificamente no que diz respeito ao complexo de Édipo e o complexo de castração nas meninas. Ou seja, existem especificidades na menina quando pensamos os complexos de Édipo e de castração? Como Freud aborda tais complexos relacionados às meninas?

Podemos dizer, logo de início, que, na medida em que se avança pelo conjunto de textos dedicados a essa questão, Freud vai questionando a relação entre subjetividade e anatomia na abordagem das diferenças entre a sexualidade de homens e mulheres. Parece que a tônica apresentada nesses textos reposiciona o papel das diferenças anatômicas que cedem mais espaço para as questões relacionadas às posições subjetivas ligadas ao feminino e ao masculino.

Em seu texto de 1923, Organização genital infantil2, Freud afirma a primazia do falo lembrando que nesse momento de sua produção há uma certa equivalência entre falo e pênis. Freud discorre sobre a organização sexual infantil onde a criança primeiramente orbita em torno do par atividade-passividade seguindo-se para as questões de ter ou não ter pênis, ou seja, a oposição entre ter o falo e ser castrado. O autor postula que há, na verdade, um masculino, mas nenhum feminino e a vagina torna-se o abrigo do pênis e não um órgão sexual equivalente a ele. Posteriormente, Lacan irá desenvolver tal ideia pontuando a ausência de um significante que possa afirmar o feminino sem que para isso seja preciso posicioná-lo em relação ao falo. Assim, a mulher não tem um objeto que a represente senão através de uma falta; o feminino é representado por uma ausência e não por uma presença. Retomando Freud, os meninos temem perder o pênis e as meninas percebem-se como seres incompletos. Características ligadas à atividade estão relacionadas ao masculino enquanto características ligadas à passividade estão relacionadas ao feminino.

Nessa mesma toada, Freud escreve, em 1924, o texto O declínio do complexo de Édipo3, que aborda a dissolução desse complexo, descrevendo o processo baseando-se principalmente no que pode ser observado nos meninos. Assim, nesse pequeno texto, Freud afirma, mais de uma vez, o seu conhecimento insatisfatório sobre o desenvolvimento do complexo de Édipo nas meninas. Nos meninos, a libido investida na mãe, seu primeiro objeto de amor, é direcionada ao pai devido à percepção da diferença sexual e ao medo da castração. O investimento libidinal que era direcionado à mãe é substituído por uma identificação com a autoridade paterna, ou seja, ocorre uma dessexualização da relação do menino com a mãe. Por identificação, as características paternas são introjetadas no menino dando origem à instância do Supereu, instância moral, herdeira da superação do amor incestuoso direcionado aos pais.

No mesmo texto de 1924 Freud afirma que a dissolução do complexo de Édipo nas meninas é muito mais simples e que “raramente ele (o complexo de Édipo) vai além da substituição da mãe e da posição feminina em relação a pai. A renúncia ao pênis não é tolerada sem uma tentativa de compensação.” Afirma ainda que “ela (a menina) desliza – ao longo de uma linha de uma equação simbólica, poder-se-ia dizer - do pênis para o bebê”4, sendo o bebê um substituto fálico para a menina.

Já em seu texto de 1925, Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos5, Freud parece ter-se dado conta da complexidade inerente aos complexos de Édipo e de castração nas meninas. A articulação do complexo de Édipo e de castração nos meninos parece muito mais óbvia, talvez pelo fato de que as características anatômicas se articulem muito mais facilmente com essas temáticas. Quando se trata do complexo de castração nas meninas, as coisas desdobram-se de forma diferente do que pensava Freud em 1924, justamente pelo fato de que nelas o objeto da ameaça de castração, o pênis, está ausente. Sobre essa falta de paralelismo Freud postula, em 1925, que “a respeito da relação entre o complexo de Édipo e o de castração, estabelece-se uma oposição fundamental entre os dois sexos. Enquanto o complexo de Édipo do menino cai por terra através do complexo de castração, o da menina é possibilitado e introduzido pelo complexo de castração”6. Isso porque a menina já está na condição de ser castrado e, por isso, não teme a castração como o menino. Ao dar-se conta de sua condição castrada, de que seu pequeno pênis não irá crescer e que a castração é fato consumado, a menina opera a troca de objeto, desloca seu amor para o pai e isso parece ocorrer por dois motivos: por uma mágoa dirigida à mãe, que a concebeu como ser de falta, e pela tentativa de compensar tal falta substituindo-a por um bebê que será dado a ela pelo pai. Dessa forma, ao operar a troca de objeto, deslocando o amor pela mãe para o pai, o que, por si só, já consiste em uma série de desdobramentos que a diferem do menino, a menina entra no complexo de Édipo, mas falta a ela um motivo forte para sair dele. Assim, os conflitos decorrentes do complexo de Édipo, nas meninas, podem ser resolvidos devagar, pois não há, nessa fase, a mesma urgência que há nos meninos. Dessa forma, as ligações edipianas estabelecidas com o pai podem estender-se ao longo da vida da mulher.

Já no que diz respeito à castração nas meninas, Freud observa alguns desdobramentos possíveis, ainda no contexto da distinção anatômica entre os sexos. Freud afirma que, ao dar-se conta da ausência do pênis, a menina desenvolve a inveja do órgão como uma possível reação à castração, o que resulta em um sentimento de inferioridade em relação ao menino e um afrouxamento dos laços com a mãe, tomada como a responsável por sua ferida narcísica.  Outra possível saída para as meninas frente à constatação da castração é o desenvolvimento de um complexo de masculinidade no qual a menina se identifica com o pai, recusando a falta fálica e mantendo a convicção de que possui um pênis. A terceira saída para as meninas frente à castração seria a feminilidade, onde a menina direciona sua libido para o pai e substitui o desejo de possuir um pênis pelo desejo de possuir um bebê. Assim a menina tomaria o pai como objeto de desejo e a mãe como rival. O que podemos ler aqui, nas entrelinhas deste momento da produção freudiana, é que existem posições femininas e masculinas e que a relação com características anatômicas não é simples como Freud havia, inicialmente, afirmado.

Muito embora Freud tenha teorizado sobre a importância do complexo de Édipo como fenômeno central na sexualidade da primeira infância, em seu texto de 1931, Sobre a sexualidade feminina7, dedica-se a elaborações sobre a fase pré-edípica, fase essa que não havia sido levada em consideração em suas aproximações anteriores sobre o tema. Em seu texto cita diversos outros autores que, como ele, deram-se conta de que algo acontece com as meninas anteriormente ao Édipo e que, em função do que é possível recolher dessa fase em um processo de análise, impede um paralelismo no desenvolvimento da feminilidade e da masculinidade. Liga essa longa fase pré-edípica ao complexo processo de troca de objeto pelo qual a menina passa até chegar à fase edípica.

No texto de 1931 Freud retoma tantos os efeitos do complexo de castração na mulher quanto as três derivações possíveis a partir do reconhecimento da superioridade masculina e da sua inferioridade, resultantes do complexo: a primeira relacionada com a insatisfação com o clitóris, um abandono da atividade masculina e da sexualidade de maneira geral, ou seja, o caminho para a frigidez. A segunda derivação é oposta à primeira, os seja, um acirramento do apego à masculinidade e da crença de possuir o pênis. O desenvolvimento do complexo de masculinidade poderia, inclusive, resultar em uma escolha homossexual de objeto por parte da mulher. A terceira derivação desembocaria na feminilidade propriamente dita, a forma feminina do complexo de Édipo, com a escolha do pai como objeto. Importante destacar o contexto histórico e cultural em que viveu Freud, para o qual a feminilidade estava diretamente relacionada à maternidade. Ou seja, Freud vai se dando conta, cada vez mais, das dificuldades de abordar as questões sobre o feminino. No ensaio final da série de textos dedicados ao tema retoma a importância dessa forte ligação pré-edípica com a mãe além de rever seu posicionamento a respeito da passividade/atividade. Nesse texto Freud descarta haver uma relação direta entre feminilidade e passividade bem como entre masculinidade e atividade.

As questões sobre o feminino aparecem também em outro texto de 1924, O problema econômico do masoquismo8, tema que abordei em um escrito anterior e que me colocou a questão sobre a qual discorro aqui, ou seja, como se dão os complexos de Édipo e de castração nas meninas. Nesse texto de Freud também se percebem apontamentos sobre o complexo de Édipo e a relação da menina com o pai, em uma teorização que envolve a pulsão de morte. Diz Freud: “Ele (o masoquismo) se oferece à nossa observação em três configurações: como uma contingência da excitação sexual, como expressão da essência feminina e como uma norma da conduta de vida. Correspondentemente, podemos distinguir um masoquismo erógeno, um feminino e um moral.”9

Interessante perceber que Freud faz apontamentos bastante seguros a respeito do masoquismo feminino, porém com base em manifestações apresentadas, em sua maioria, por homens. Dá o nome de masoquismo feminino a tais manifestações devido à posição que o sujeito se coloca: ser castrado, ser possuído sexualmente ou dar à luz, sendo as duas primeiras não restritas somente às mulheres. Novamente percebe-se uma disjunção entre anatomia e psiquismo.

Dessa forma surge uma questão: de que se trata o masoquismo feminino ligado às mulheres, para o qual Freud apresenta poucas elucubrações? A menina opera a troca de objeto, retirando o investimento libidinal que estava direcionado para a mãe e o investe no pai, experimentando uma mágoa direcionada a essa mãe, também castrada, que não lhe deu o suficiente, não a proveu de um pênis. Para Freud a agressividade entre mãe e filha tem nesse fato a sua origem.  Estaria a menina fadada a voltar-se novamente para a mãe, seu primeiro objeto de amor e para a qual estavam voltadas todas as suas moções libidinais, na tentativa de descobrir o que é uma mulher? Seria nesse ponto que ocorreria a ressexualização da relação mãe e filha, resultando numa reação do Supereu contra o próprio Eu, na culpa e na necessidade de punição característicos do masoquismo feminino?  Como a menina pode vir a se separar da mãe como objeto de sua libido? Quais as consequências dessa separação? São questões cuja aproximação pode dar-se através do conceito de devastação, apresentado por Lacan, cujo desenvolvimento mostra-se igualmente complexo e que poderá ser retomado em outro artigo.

 


Referências Bibliográficas 

1. Trabalho elaborado como requisito do Curso Psicanálise de Orientação Lacaniana - ICPOL-SC, com orientação de Maria Teresa Wendhausen. Florianópolis, junho de 2023. 

2. FREUD, S. Organização genital infantil. In: ______. Amor, sexualidade, feminilidade. Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 1 ed. 

3. FREUD, S. O declínio do complexo de Édipo. In: ______. Amor, sexualidade, feminilidade. Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 1 ed. 

4. Idem p. 253 

5. FREUD, S. Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In: ______. Amor, sexualidade, feminilidade. Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 1 ed. 

6. Idem p. 269 

7. FREUD, S. Sobre a sexualidade feminina. In: ______. Amor, sexualidade, feminilidade. Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 1 ed., 2020. 

8. FREUD, S. O Problema Econômico do Masoquismo. In: ______. Neurose, Psicose, Perversão. Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 1 ed., 2021. 

9. Idem p. 289

 

 


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