A passagem do Seminário 14 ao 15: da Lógica ao Ato, uma via de abertura[1]*

Teresinha N. Meirelles do Prado (EBP/AMP)

 
Danielle Lemes. Zimbório

Pretendo fazer alguns saltos, articulando elementos evocados em diversos trechos do Seminário 14 e sua relação com um ponto que aponta para adiante, buscando tecer um fio que nos permita vislumbrar algo da conexão entre esses dois seminários consecutivos de Lacan. Partirei de algumas referências fornecidas por J.-A Miller em relação ao tema da lógica do fantasma, em seguida passo a uma articulação mais direta entre alguns trechos escolhidos do Seminário 14 e o que nele aponta para o Seminário 15.

Em Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos, Miller faz uma aproximação com a química para abordar a especificidade do fantasma. Ele usa como metáfora a molécula, que é ‘uma reunião de átomos suscetíveis de se transformar ao longo de uma reação química’[2]. Essa ‘molécula’ é composta por dois elementos heterogêneos: um átomo de significância e um átomo de gozo. A interpretação seria a reação química que visaria à separação entre esses dois átomos ligados por força do fantasma. Ele vai articular então o fantasma e o passe pelo sinthoma como o desvelamento da singularidade no gozo. O sentido “não passa de uma rotina, diz ele, a rotina de um discurso, [...] do meio em que se vive”[3]. No que diz respeito à inexistência da relação sexual e ao gozo, esse sentido é semblante. É a heterogeneidade desses dois elementos que faz com que o final de uma análise não se dê pela via da verdade, que é reduzida à verdade mentirosa, ao semblante. E o que se elucida no sinthoma é como, para cada um, “o gozo é interpelado pelo semblante, pelo significado, pela bela forma inesquecível[4] [...]”[5]. Estes trechos articulam o fantasma e o que Lacan concebeu como final de análise pela identificação com o sinthoma. 

Impressões gerais do Seminário 14

Um dos pontos que me intrigaram na leitura desse Seminário é seu caráter declarado de work in progress. Lacan diz, em diversos momentos, como por exemplo no capítulo 17, ou seja, cerca de um mês antes de concluir o ano, que está “tentando esboçar uma estrutura [...] que se anuncia como lógica, [...] uma lógica talvez incerta e muito precária”[6]. Logo adiante, diz ainda: “[...] tento lhes mostrar o ponto acessível de uma articulação”[7].

E ainda, na página 288, ele diz: “Bem, tudo isso, vejam, ainda é girar ao redor. Deus sabe, no entanto, que trabalho duro para que a coisa não seja assim. É preciso, portanto, acreditar que, se ainda estamos girando ao redor, é porque não é fácil entrar nisso”[8].

J.-A. Miller destaca essa particularidade na quarta capa do livro ao dizer que a expressão “Lógica do fantasma” retorna ao longo de todo o Seminário 14 como um leitmotiv, mas nenhuma aula é dedicada a ela, nem desenvolve seu conteúdo. Isto coloca um problema para quem pretende encontrar ali a resposta sobre o que constitui logicamente o fantasma. O que Lacan faz ali é tentar estabelecer as bases para pensar uma lógica a partir da psicanálise.

Meu objetivo hoje é tentar localizar no Seminário 14 alguns pontos que conduzem ao tema do Seminário 15, lembrando que a primeira aula desse Seminário [15] retoma o que foi trabalhado no anterior:

Aqueles que se lembram do ponto no qual se encerrou o meu discurso do ano passado, no interior dessa lógica do fantasma, acerca da qual tentei acrescentar todos os delineamentos, aqueles que me ouviram falar com determinada ênfase, e em dois registros, sobre o que pode, sobre o que deve querer dizer o termo também pareado com o ato sexual, estes podem, de certo modo, sentir-se já introduzidos à dimensão que representa o ato psicanalítico[9].

Ou seja, esse ponto que percorre pelo menos metade do Seminário 14, que começa na diferenciação que Lacan vai fazendo entre compulsão à repetição, acting out, passagem ao ato e sublimação, diz ele no Seminário 15, remete diretamente à dimensão do ato analítico.

O Seminário 14 se inicia com Lacan repassando a causação do sujeito e sua configuração lógica. Como ponto de partida, ele especifica a fórmula do fantasma: $<>a, na qual o sujeito barrado, portanto dividido, se enlaça com algo que Lacan chamou de a, o objeto cuja especificidade ele delineou 3 anos antes, no Seminário 11.

Foi também no Seminário 11 que Lacan falou da relação entre o sujeito, o Outro e o objeto a, na intersecção dos dois círculos de Euler que ele apresentou ali[10]. No Seminário 14, a esse respeito, ele vai dizer que ‘o sujeito só pode se instituir como uma relação de falta no que diz respeito ao Outro – a menos que queira se situar no Outro, caso em que igualmente será amputado desse objeto a[11].

Nos círculos de Euler a operação de União apresenta a ligação do sujeito com o Outro e a intersecção define a função do objeto a: “De fato, apenas com o corte por onde essa bolha que instaura o significante no real deixa cair primeiramente esse objeto estranho que é o objeto a, o sujeito ainda não apareceu”[12].

Daí se institui o que ele chama de ‘bolha’ que é o tecido do desejo, fundada na representação de uma falta. Logo adiante ele vai se referir ao ‘tecido do sujeito’, o que faz supor uma equivalência entre sujeito e desejo: “A falta que essa estrutura de bolha instaura e que constitui o tecido do sujeito, não deve ser reduzida ao termo negatividade”, pois “o significante não é só o que traz o que não está”, como se pode ver a partir do Fort-da, que não se reduz à descrição da presença e ausência materna como ‘articulação exaustiva da entrada em jogo do significante’[13], mas que este significante engendra o que não está ali. E o que não está ali, diz Lacan, é o próprio sujeito. Daí ele ter dito pouco antes que a divisão entre eu/não-eu é redutora e inadequada. E é justamente por isso que ele define o sujeito como aquilo que um significante representa para outro significante a partir do recalque originário, o Urverdrängung. E que o Dasein, o ser, está do lado do objeto a. Prova disso é que nenhum significante pode representar a si mesmo, como no exemplo do catálogo dos catálogos, no paradoxo de Russell. Por isso uma escrita não precisa ‘querer dizer algo para alguém’, mas basta “que cada signo represente um sujeito para aquele que o segue”[14].

            No Seminário 14, Lacan define a realidade como o “pronto-para-portar-o-fantasma”, a vestimenta imaginária, o que recobre o real e também funciona como alicerce, sustentando-o. Algo do real só pode ser vislumbrado quando vacila a máscara do fantasma.

O sujeito barrado, efeito do recalque originário, é definido ali como ‘o que representa um sentido para o significante do qual ele surgiu’[15].

No Seminário 11, quando comenta o cross-cap ou oito interior como equivalente à estrutura do sujeito, Lacan propõe que ‘essa imagem figura o desejo como lugar de junção do campo da demanda, onde se presentificam as síncopes do inconsciente com a realidade sexual’[16].

É interessante que ali, em 1964, ele situa nesse ponto o desejo do analista como o que produz esse efeito a partir da demanda: então é o desejo do analista que ‘presentifica na experiência analítica a incidência do sexual’[17].

Voltando ao Seminário 14, em várias aulas Lacan vai se deter em delimitar as implicações lógicas do que apresenta nos círculos de Euler, passando à configuração: ‘não penso X não sou’ a partir do cogito cartesiano confrontado com a famosa frase freudiana, que ele resgata de um erro de tradução praticado pela chamada ‘psicanálise do ego’. A frase é Wo Es war sol Ich werden, que erroneamente era traduzida como “o eu deve desalojar o Isso”, Lacan recoloca: “Lá onde isso era, eu devo advir”, ou seja, não se trata de ‘desalojar’, pelo contrário. Por isso Lacan diferencia o Je (que ele define como o inconsciente) e o moi (que é o que se costuma chamar de ‘eu’ como estrutura que constitui uma identidade imaginária). A partir disso ele retoma a frase cartesiana ao dizer: “Penso onde não sou, logo sou onde não me penso”. E no escrito “A terceira” (1974) ele acrescenta uma nova leitura: “Penso, logo se goza”, ou “penso, logo(z)sou”, articulando o logos e o gozo.

Também em “A terceira” Lacan se refere em tom jocoso à questão do número de ouro e aos esforços infrutíferos do conhecimento:

Quando penso que me diverti por um momento a brincar com esse S1 — que elevei à dignidade do significante Um — e o a, enlaçando-os por meio do número de ouro! Essa vale por mil! Quero dizer que isso adquire o alcance de escrevê-lo. De fato, era para ilustrar a vanidade de todo coito com o mundo, quer dizer, do que até aqui se chamou de conhecimento. Pois não há nada mais no mundo além de um objeto a — bosta ou olhar, voz ou teta —, que refende o sujeito, caracteriza-o como esse dejeto que ex-siste ao corpo[18].

Mas “A terceira” é um escrito de 1974. Aqui estamos no Lacan de 1966-67, às voltas com a transmissão de algo que ele vai anunciando pouco a pouco, até chegar a dizer sua pretensão, quase na metade do ano: “definir a função do objeto a no seu estatuto lógico”[19]. E a partir disso situar o $ e o campo do Outro, igualmente barrado, cujo significante da falta designa a alienação, e permite caracterizar o desejo do neurótico por sua propriedade de girar em torno da demanda do Outro[20], sem se dar conta de que esse Outro também é barrado, o que lhe permite situar mais adiante a questão da angústia do Outro barrado como raiz da posição do sujeito tomada como posição masoquista, a partir de um ponto de gozo situado no Outro. 

Dimensões do ato

Nessa mesma aula, a IX, intitulada “Alienação e repetição”, Lacan repassa a função do corte nas estruturas moebianas, como o que caracteriza a repetição. E a partir da repetição introduz a discussão em torno da questão do ato. De saída, ele já afirma algo que retomará no início do Seminário 15: a definição do ato como descarga motora não serve para defini-lo sob o ponto de vista da psicanálise. Lacan define o ato justamente a partir da função da dupla volta nas figuras topológicas, designando isto como repetição. O que caracteriza o ato é justamente que ali o sujeito é equivalente ao seu significante, embora continue dividido. Ser equivalente ao seu significante é a mesma coisa que significar a si mesmo? Esta é uma questão trazida por Lacan, cuja resposta que ele mesmo nos fornece, é sim. Então o ato produz essa exceção que o significante por si só não é capaz de produzir: a possibilidade de significar a si mesmo. Isto aconteceria porque “no ato, o sujeito é representado como pura divisão”[21]. Lacan enfatiza que o mais importante não é a definição do ato, mas seus efeitos. O corte que ele apresenta por meio da estrutura moebiana, apresenta o ato como um corte que muda a estrutura da superfície inicial.

Há uma repetição intrínseca a todo ato[22], que se dá por retroação, pela incidência significante que a comanda. Essa incidência produz um corte. Lacan exemplifica esse ponto com a famosa travessia do riacho do Rubicão feita por César: qualquer um pode atravessá-lo, basta tomar um trem para Sarraceno, mas isto não basta para que seja definido como um ato[23]. Para se caracterizar um ato é preciso buscar os seus efeitos. Um deles é que o próprio sujeito é transformado por esse ato; há um antes e um depois que não tem volta. Outra vertente do ato, que Lacan menciona em sua última frase dessa lição e que está ligada à alienação, é o acting out.

Na lição seguinte, ele vai articular passagem ao ato, acting out e sublimação, colocando-as, juntamente com a repetição, em um quadro ao qual dá o nome de quadrângulo da repetição. E traz a questão da compulsão à repetição como algo alheio ao princípio de prazer. Não se trata ali de redução da tensão ao mínimo, mas das coordenadas de identidade significante.

Ao mesmo tempo a alienação equivale ao S( ), porque introduz no campo do Outro a mesma finitude do sujeito que é trazida pela repetição. Essa finitude se caracteriza por depender dos efeitos do significante.

A sublimação é caracterizada como uma satisfação que escapa à censura, por ser inibida quanto ao alvo. Mas Lacan afirma algo mais: ‘é impossível nos orientarmos no problema da sublimação sem introduzir o termo ato’.

Em seguida, ele enumera as propriedades do ato[24]:

- é significante;

- um significante que se repete;

- é a instauração do sujeito como tal (por um ato que o faz ressurgir diferente);

- ele implica um  desconhecimento, ou um limite imposto ao seu reconhecimento no sujeito, cujo correlato é a denegação (Verleugnung): o sujeito não é capaz de reconhecer o verdadeiro alcance inaugural do ato cometido.

Ao enumerar essas quatro propriedades, Lacan passa ao ato sexual, que segundo ele tem todas essas características. Ele não se reduz à copulação e se apresenta como um significante que repete algo: a cena edipiana.

Quanto à possibilidade de ser a instauração de algo que é sem volta para o sujeito, cita como exemplo os atos sexuais incestuosos. E menciona um escrito, “A significação do falo”, destacando dele o ponto de conjunção que é o falo como significante, que “dá a razão do desejo” [como média e extrema razão da divisão harmônica], que, sendo um significante, ‘é no lugar do Outro que o sujeito tem acesso a ele’. Mas como “esse significante só se encontra aí velado e como razão do desejo do Outro, é esse desejo do Outro como tal que se impõe ao sujeito reconhecer, isto é, o outro enquanto ele mesmo é um sujeito dividido pela Spaltung significante”[25]. O desenvolvimento lógico que Lacan faz a partir disto, tem como decorrência a castração em jogo na conjunção sexual pela função do falo como significante primordial que falta.

Mais uma vez ele questiona o modelo do arco reflexo, que é fundamentado por uma concepção orgânica de um aparelho homeostático, pois isto não é capaz de responder à questão da busca do objeto, que só é concebível em termos de satisfação. E nem o modelo orgânico da satisfação é capaz de explicar seu aspecto subjetivo. Menos ainda considerando-se o ato sexual como uma harmonia suposta por uma via complementar, “como a conjunção complementar, o encaixe perfeito entre o elemento macho e o elemento fêmea”[26]. É preciso considerar um terceiro elemento, o falo, e tudo que, a partir dele, gira em torno da castração[27]. Esse elemento terceiro é o campo subjetivo na relação sexual, que não tem nada de harmônica.

O mito da enunciação religiosa da fusão em “uma só carne”, ao contrário de afirmar a unidade do casal, na verdade diz respeito ao lugar do Outro materno como unidade, e ao que tanto o menino quanto a menina é para esse Outro, como a, como elemento terceiro.

O que pode simbolizar a eliminação do resto, no que comumente se chama de relação sexual, é justamente o pênis como sede da detumescência. A ideia fantasiosa de uma descarga das tensões pulsionais, ironicamente é o que impõe um limite ao gozo que supostamente estaria no cerne da satisfação sexual. A detumescência coloca esse limite. Lacan também fala disso no Seminário 10.

Um exemplo dessa heterogeneidade radical entre gozo macho e gozo fêmea é o interesse de alguns em verificar a simultaneidade de seu gozo com o do parceiro, diz Lacan. E especifica que

“Na relação amorosa, a mulher encontra um gozo que é, como se diz, da ordem da causa sui, na medida em que o que ela dá sob a forma disto que ela não tem, é também a causa de seu desejo. Ela se torna o que cria, de maneira puramente imaginária, e cria justamente o que a torna objeto – na medida em que, na miragem erótica, ela pode ser o falo, sê-lo e ao mesmo tempo não o ser. O que ela dá, por não o ter, torna-se, acabo de dizer, a causa de seu desejo.

É por esta razão que a mulher está sozinha, pode-se dizer, a concluir de modo satisfatório a conjunção genital – mas é, claro, na medida em que o objeto que ela forneceu, por não o ter, só desaparece por meio do truque da castração masculina, deixando-a à satisfação de seu gozo essencial. Em suma, na conjunção sexual ela não perde nada, pois só coloca ali o que não tem e que, literalmente, cria.” [28]

Aí se justifica a inclusão da sublimação no quadrante da repetição, por sua conexão com o ato sexual, na precisão fornecida acima. Interessante que Lacan vai apontar o funcionamento da sublimação como decorrente da identificação com a mulher: “ligada ao dom de amor, feminino, na medida em que ele cria o objeto evanescente”[29] que lhe falta – o falo. E mais adiante, afirma que ao contrário da estrutura pura e simples do ato sexual, a sublimação parte da falta e constrói sua obra, que é uma reprodução dessa falta, mesmo que não se trate de uma obra de arte[30].

Lacan segue nas articulações em torno do ato, aproximando-se da questão do ato analítico. Aí sim, já não há como escapar da conexão entre os dois Seminários consecutivos. Lacan destaca nesse momento que há na teoria um ponto em que se conjugam o registro do ato e a função do analista’[31], algo que remete diretamente ao tema do Seminário 15.

Aborda em seguida o acting-out e sua relação com a intervenção do analista, citando o caso do homem dos miolos frescos, de Ernest Kris: diante das autoacusações de plágio de seu paciente, [Kris] afirma que ele não é plagiário, pois verificou a suposta prova desse plágio e não encontrou nada[32]. Ou seja, Kris foi ‘verificar’ o objeto, situando-o em uma confrontação que confunde verdade fantasmática e realidade factual. Lacan aponta a cegueira do analista ao não perceber que não se tratava ali de um plágio efetivo, mas do desejo de plagiar, por sentir que só tem valor algo que tenha sido tomado emprestado de um outro. Essa intervenção de Kris é recebida pelo paciente com silêncio. Na sequência, o sujeito anuncia que faz algum tempo que, ao sair do consultório do analista, vai ao restaurante saborear um prato de miolos frescos. Lacan aponta aí a evidência do acting-out em conexão com a intervenção do analista: dado que este não soube interpretar o desejo ali em jogo, o analisante presentifica em ato o objeto de que se trata; no caso, objeto oral, cegamente evocado pelo analista pela via negativa. A própria definição de acting-out é esta: representar uma cena que, no caso, o analista leu mal, ou não soube ler. Essa intervenção, diz Lacan, não incidiu no campo da verdade, mas do Outro sexual[33], que “nada tem a ver com o ato analítico”[34]. Lacan faz aí uma discussão fundamental para nossa prática, ao perguntar “Onde está o analista?”, desfazendo o possível equívoco de que, pelo fato de realizar, no campo da verdade, o corte da interpretação, ele o faria identificado ao campo do Outro; inferência precipitada que já a levou a ‘grosseiras analogias’ (sic), “entre o analista e o pai, por exemplo”[35].

O ato analítico é fundamental para considerar a questão do fantasma. Não se trata do ato sexual, mas há algo que o evoca: a cama analítica, diz Lacan, o divã. Isto introduz o sexual como um campo vazio. A aproximação com o fantasma está no fato de que ele se caracteriza pela ‘relação de a com o sujeito barrado, na medida em que esse sujeito se esforça por situar-se em relação à satisfação sexual’[36].

Depois de apresentar essas modalidades do ato, Lacan questiona o que é chamado de ‘ato sexual’, dado que um ato, pelo ponto de vista da psicanálise, constitui uma duplicação do efeito motor pela função significante que o insere em uma cadeia, inscrevendo o sujeito. Se o falo, índice da castração, é esse terceiro que conta no encontro sexual, não é possível afirmar que homem e mulher são opostos, nesse ato, por alguma essência que os transcende. Lacan acrescenta ainda que: ‘é porque existe sexualidade, que o ato sexual não pode existir’[37]. Especialmente porque não há equivalência, dado que algo do gozo feminino não é capturado nas trocas em jogo entre ‘homem-ele’ e ‘homem-ela’[38].

No capítulo XVII, Lacan volta ao tema da castração como estruturante. ‘Estar em conformidade com o complexo de castração quer dizer que se está normatizado com relação ao ato sexual’[39]. Nessa lição, ele faz a pontuação de que ‘o objeto em jogo na dimensão normativa, dita genital, do ato sexual’, ‘está muito mais próximo da detumescência’[40]. Mas isto também não basta para constituir o complexo de castração.

O que a detumescência introduz, diz Lacan, é o limite do princípio do prazer[41]. A detumescência funciona como o negativo de certo gozo, para além do princípio de prazer, na sua borda. Um gozo que o sujeito recusa, foge dele porque “esse gozo, como tal, é excessivamente coerente com a dimensão da castração, percebida no ato sexual como ameaça”[42].

Lacan nomeia como único gozo identificável esse “gozo do corpo próprio”, que está para além do princípio do prazer e conjuga eros e thânatos. ‘O encontro sexual não passa pelo princípio do prazer’, pois só consegue se orientar (mas não entrar) no gozo aí envolvido, por meio de uma negativação dirigida ao gozo do órgão na copulação – e é isto que faz surgir, diz Lacan, a ideia de um ‘gozo do objeto feminino’[43]. E se trata de uma ideia porque ninguém sabe o que isto quer dizer, pois o próprio gozo dito feminino passa pela mesma referência. Lacan forja um termo para localizar isto: homela. Ou seja, dois lados da mesma moeda, do lado homem das fórmulas da sexuação, conforme ele aponta no Seminário 20, com a ressalva de que algo escapa ao homela, algo de mulher, que ele chama de odor di femina[44], que não é fácil de encontrar, acrescenta ele (daí o fato de analistas mulheres serem tão incompetentes quanto analistas homens para nomeá-lo).

O ato sexual, diz Lacan, só interessa ao analista porque nele o gozo está em causa[45]. E só se estabelece se faltar gozo em algum lugar.

Chegamos à penúltima aula do Seminário 14, e é aí que finalmente Lacan vai falar do fantasma. Ele começa dizendo que o fantasma é “de maneira mais estreita do que todo o resto do inconsciente, estruturado como uma linguagem”[46], pois é uma frase, com uma estrutura gramatical que se apresenta como uma significação fechada.

Lacan retoma então o texto de Freud: “Uma criança é espancada” que havia mencionado nas primeiras aulas, destacando que a estrutura da frase: “uma criança é espancada” não se inicia, mas se mostra, e isto se dá pela estrutura gramatical que ele destaca ser a essência do Isso, pois o eu [Je] está sempre excluído do fantasma. Mesmo quando, no segundo tempo da construção fantasmática proposta por Freud, o sujeito está no lugar da criança espancada, isto só é confessado em casos excepcionais.

Ele marca a diferença entre a estrutura do fantasma na neurose e na perversão: nos neuróticos ele fornece ‘a medida da compreensão’[47] por despertar neles o desejo; na perversão ele fornece apenas a estrutura, são de naturezas diferentes. Nesse sentido o perverso realiza o ato sexual, envolvendo nele um gozo. O fantasma de ser surrado, por exemplo, não tem uma especificidade tão grande nos casos de neurose, não está ligado a um tipo específico de estrutura clínica, mas no campo do sintoma o desejo marca a diferença entre as estruturas, não é a mesma coisa uma estrutura obsessiva ou uma estrutura histérica.

Lacan reforça a necessidade de marcar as diferenças entre o fantasma neurótico e o que ocorre na perversão. No campo da neurose o ato sexual só pode se realizar parcialmente, sob a forma da sublimação, desviando-se de seu alvo. No final, diz Lacan, o fantasma sempre terá que se inscrever nos registros que são: para a fobia o desejo prevenido; para a histeria o desejo insatisfeito; para a obsessão o desejo impossível. Então, na neurose, o fantasma tem o papel de uma significação de verdade. ‘O neurótico encontra nesse arranjo um suporte para remediar a carência de seu desejo no campo do ato sexual’[48].

É através do discurso que se instaura em uma análise que cada sujeito vai buscar, nas falhas dos enunciados, essa verdade que está colocada de início. A regra da associação-livre é o que faz com que uma verdade inconsciente se enuncie; há uma anterioridade lógica do estatuto da verdade para o sujeito. A interpretação analítica tem como alvo essa verdade, que o discurso analítico deve ‘cativar’[49]. O analista deve ser colocado na posição de sujeito-suposto-saber, pois ali se produzem os efeitos da transferência, que devem ser retificados no sentido da verdade. Então, diz Lacan, o analista está entre duas posições: “entre a posição falsa, de ser o sujeito-suposto-saber, o que ele sabe muito bem que não é, e a de ter que retificar os efeitos dessa suposição que o sujeito faz, e isto em nome da verdade”[50]. O analista deve funcionar aí como um conector[51].

É interessante o destaque dado por Lacan ao fato de que ‘o analista está, como todo mundo, em dificuldade com seu inconsciente’, e é por essa dificuldade que poderá ‘responder dignamente’ do lugar de onde se espera que venha a interpretação: o analista ‘só pode responder com sua dificuldade de ser analista’[52]. Isto está no fundamento do discurso analítico, diz Lacan. Fica claro que não é pela via da idealização que a psicanálise deve conceber o lugar e a função do analista, menos ainda por uma condição identificatória.

Se ‘o desejo é falta’, diz Lacan, mesmo havendo os objetos-causa de desejo, não existe um objeto com o qual o desejo se satisfaça integralmente[53]. Por isso, uma análise leva em conta essas duas vertentes: a do fantasma e a do sintoma, que colocam em jogo, de modos diferentes, o sujeito barrado, o Outro, incluindo-se aí a questão do desejo, e o objeto, considerado também em diferentes perspectivas. Este foi também o motivo de evocar, no início deste texto, a referência de J.-A. Miller ao passe do falasser: a relação incomensurável entre dois elementos heterogêneos presentes na fórmula do fantasma, é também o que permite isolar, ainda que de modo contingente, a singularidade do gozo que é interpelado pelo semblante, desviando o falasser dos tormentos da verdade mentirosa. Isto evidencia também a conexão entre esses dois Seminários: não é por acaso que Lacan passa da Lógica do fantasma ao Ato analítico

 

[1]* Texto elaborado a partir de aula ministrada no curso de psicanálise do ICPOL-SC, módulo: “A lógica da fantasia”, em 13/04/2024.

[2] Miller, J.-A. Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos. RJ: Zahar, 2011, p. 201.

[3] Id, ibid., p. 226.

[4] Aqui ele se refere especialmente a Marcel Jouhandeau, mas toma-o como paradigma do passe pelo sinthoma: ‘um falasser não atormentado pela verdade’. Id., ibid.

[5] Id, ibid.

[6] Lacan, J. O Seminário, livro 14: a lógica do fantasma. RJ: Zahar, 2024, p. 280.

[7] Id, ibid.

[8] Id, ibid., p. 288.

[9] Lacan Jacques, Le Séminaire. Livre XIV. La Logique du fantasme. Paris: Editions du Seuil, coll. "Champ freudien", 2023, p. 11.

[10] Lacan, J. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. RJ: Zahar, 1985. [capítulo sobre o campo do Outro, p. 232 e seguintes]

[11] Lacan, J. Op.cit., 2024, p. 20.

[12] Id. Ibid. , p. 19.

[13] Id., ibid., p. 21.

[14] Id., ibid., p. 22.

[15] Id., ibid.

[16] Lacan, J. Op.cit., 1985, p. 149.

[17] Id., ibid.

[18] Lacan, J.; Miller, J.-A. A Terceira; Teoria de Lalíngua. RJ: Zahar, 2022, p. 25.

[19] Lacan, J. Op.cit., 2024, p. 124.

[20] Id. Ibid., p. 156.

[21] Id. Ibid., p. 161.

[22] Id. Ibid., p. 159.

[23] Id., ibid., p. 161.

[24] Id. Ibid., p. 172.

[25] Lacan, J. “A significação do falo”. In: Escritos. RJ: Zahar, 1998, p. 700.

[26] Lacan, J. Op.cit., 2024, p. 181.

[27] Idem, ibidem.

[28] Id. Ibid., p. 190.

[29] Id. Ibid.

[30] Id. Ibid., p. 207.

[31] Id. Ibid., p. 198.

[32] Id. Ibid., p. 200.

[33] Id. Ibid., p. 204.

[34] Id. Ibid., p. 203.

[35] Id. Ibid., p. 204.

[36] Id. Ibid., p. 208.

[37] Id. Ibid., p. 219.

[38] Id. Ibid., p. 227.

[39] Id. Ibid., p. 282.

[40] Id. Ibid., p. 287.

[41] Id. Ibid.

[42] Id. Ibid., p. 288.

[43] Id. Ibid.

[44] Id. Ibid., p. 289.

[45] Id. Ibid., p. 303.

[46] Id. Ibid., p. 323.

[47] Id. Ibid., p. 325.

[48] Id. Ibid., p. 352.

[49] Id. Ibid., p. 344.

[50] Id. Ibid.

[51] Id. Ibid.

[52] Id. Ibid., p. 345.

[53] Id. Ibid.


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