NÚCLEO DE PESQUISA EM PSICANÁLISE E LITERATURA[1]
A inelutável modalidade do visível e do audível
Danielle Lemes. Sem título.
Nosso percurso teve início com a leitura de Um retrato do artista quando jovem, de 1914, primeiro livro de James Joyce, e atualmente estamos no caminho de Ulysses, de 1922. A pesquisa do Núcleo em 2023 foi em torno de algumas referências literárias utilizadas por Lacan ao longo do seu ensino. Percebemos, no entanto, que a leitura e pesquisa em James Joyce não seria possível em um ou dois encontros, mas sim no ano inteiro, e olhe lá. A partir das ressonâncias dos discursos pensamos em abordar a questão do corpo e da escrita em Joyce.
Os três primeiros episódios de Ulysses são dedicados a Stephen Dedalus, mesmo personagem de Um retrato..., por isso ainda não estamos na construção corporal joyceana, tal qual vemos no esquema proposto por Stuart Gilbert. Só quando abrimos o episódio intitulado Calipso com a primeira aparição de Bloom que o corpo despedaçado começa a ter uma composição, pela escrita, com o Rim, passando em seguida aos Genitais, Coração, Pulmões, Esôfago, Cérebro, Sangue, Ouvido, Músculo, Olho, Nariz, Útero, Aparelho Locomotor, Nervos, Esqueleto e Carne. Para Lacan, cada episódio do livro é um enquadramento, não fantasmático, para Joyce.
Em Calipso vemos Bloom refletindo sobre como sua imagem é vista pelos outros a sua volta ao se perguntar: "Fico imaginando como é que ele [o gato] me vê"[2], instaurando de entrada o fato de que sua relação com a imagem e com o Outro está comprometida de modo a não mais fazer parte do discurso, mesmo estando e fazendo uso da linguagem, como apregoa Lacan. Testemunhamos com isso, na escrita de Ulysses, os efeitos do estar fora do discurso na medida em que ele perturba os discursos vigentes na época, instaurando com isso um modo de fazer proposto por Lacan no Seminário 20 em torno da letra, ao dizer que algo da letra vem perturbar o discurso.
Depois de ir ao mercadinho comprar fígado para o café da manhã, e perseguir com o olhar a bunda da primeira cliente, Bloom retorna e encontra sua amada Molly na cama lendo um livro. Ela pergunta a ele uma palavra do livro, localizado no chão junto ao penico: metempsicose. "É grego: vem do grego. Quer dizer transmigração de almas"[3] Aqui começa uma discussão sobre o que acontece após a morte. Tudo isso ocorre porque teremos o velório e o enterro de Dignam no terceiro episódio desta leva e Bloom irá nesse cerimonial. Além disso, a transmigração das almas também é uma discussão sobre o corpo, o que acontece com o corpo depois da morte?
Se dizemos com Lacan que a escrita de Joyce lhe forneceu um Eu, pois não teve seu Eu ratificado pelo Outro via imagem, em cada episódio também temos a consistência de corpo, ou de uma parte do corpo, sem com isso receber a confirmação da imagem pelo Outro. "Tem gente que acredita que a gente continua vivendo em outro corpo depois da morte, que a gente já viveu antes. Eles chamam isso de reencarnação. Que todo mundo já viveu na terra milhares de anos atrás ou em algum outro planeta. Eles dizem que a gente esqueceu. Tem quem diga que lembra das vidas passadas. [...] Metempsicose é como os gregos chamavam antigamente. Eles acreditavam que você podia virar um bicho ou uma árvore, p. ex. O que eles chamavam de ninfas, por exemplo"[4].
A tese é de que continuamos vivendo em outro corpo. A deusa da morte e ninfa do mar é Calipso, com característica sedutora e que na origem de seu nome quer dizer "esconder, ocultar, encobrir". O que está sendo escondido, oculto e encoberto? Aqui nos deparamos com um espelho diferente daquele trabalhado por Lacan no Estádio do Espelho e depois nas suas elaborações do esquema ótico. Joyce se "constitui" diante de um espelho escuro, um espelho sem camada de estanho e, por isso, sem o recurso da reflexão, ele não reflete a imagem de quem se encontra diante dele. Lemos isso do seguinte modo: "O senhor Bloom com seu pau suave remexia a areia grossa a seus pés. Escrever uma mensagem pra ela. Pode ser que fique. O quê? Eu. Algum pèchato pisoteia de manhã. Inútil. A água apaga. A maré vem até aqui uma pocinha perto do pé dela. Me abaixar, ver o meu rosto ali, espelho escuro, respirar nele, se mexe. Esse monte de pedras com riscos e escaras e letras. Ah, a transparente! Além disso elas não sabem. Qual é o sentido daquele outro termo emundo. Eu chamei você de levado porque não gosto. Sou. Um. Acabou o espaço. Largue mão."[5]
A constituição da imagem no espelho fornece à outrora libra de carne um Eu, inscrevendo no corpo uma escrita que depois será tecida de muitos elementos. Em Joyce, nós vemos uma "falha de escrita do corpo próprio"[6] lhe dando acesso a um corpo sem imagem, pré-requisito lógico para o destacamento do corpo. Tal ausência de imagem "permite escrever uma fórmula de negativação do gozo do corpo que não decorre da castração"[7] gerando uma escrita que, ao avesso do sentido da escrita impressão, é a escrita que dá suporte ao pensamento e, com isso, no caso joyceano, podemos dizer que também dá suporte ao corpo sem imagem e sem Eu, já que o pensamento e o corpo se sustentam pelo imaginário. "O que vem primeiro, a palavra (mot) ou o fazer? Certamente não é a palavra, mas uma escrita do corpo, depois da qual a palavra virá"[8].
Depois de ouvir o sermão na igreja, ele vai comprar seu sabonete e tomar um banho. "Bom um banho agora: cuba de água clara, esmalte fresco, curso suave e tépido. Este é o meu corpo. Ele anteviu seu corpo pálido reclinado nela todo, nu, em ventre cálido, ungido por fragrante sabonete derretido, leve lavado. Viu seu tronco e seus membros marolondulados sustentados, boiando leves à tona, amarelimão: seu umbigo, botão de carne: e viu os negros cachos emaranhados de seu tufo flutuantes, flutuantes cabelos do cursod'água em torno do murcho pai de milhares, uma lânguida flor flutuante"[9] É preciso que ele diga a si mesmo que tem um corpo, reafirmar que aquele é seu corpo e não uma peça solta. E ali, pelado, depois de saber ser o seu corpo, ele faz uma descrição de seu pênis como uma flor flutuante. É algo castrado, quase como se não fizesse parte do corpo e estivesse flutuando na espuma.
A relação de Sthepen Dedalus/Joyce com seu corpo
Ao falar da obra joyceana, os psicanalistas costumam tomar, na maior parte das vezes, o referente da cena da surra acometida contra o personagem por Heron, junto a Nash e Boland. Talvez esta referência – de um corpo que cai como a casca – consagrou-se como a mais paradigmática e habitual, precisamente em razão de ser à qual o próprio Lacan recorreu no Seminário 23. Há, contudo, elementos interessantes para pensarmos a mencionada relação também no capítulo 4 do romance Um retrato... Trata-se de dois momentos em que o corpo do personagem entra em cena de modos distintos.
Para melhor situar a problemática, faz-se necessário retomar alguns elementos do capítulo 3. Nele, Joyce dedica dezenas de páginas à oratória do reitor do colégio que versará sobre a relevância do retiro espiritual, a se realizar em honra a São Francisco Xavier. O padre descreve pormenorizadamente os quatro derradeiros momentos orientadores da alma devota [morte, julgamento, inferno e paraíso] e os suplícios do eterno inferno. Esse é, vale mencionar, o primeiro momento do livro em que aparece um discurso sistematicamente ordenado, pleno de um sentido compartilhado e carregado de intencionalidade.
As palavras proferidas pelo orador capturam e atormentam brutalmente Stephen. Penetram em seu espírito e tomam violentamente seu corpo. O jovem, tomado de pavor, “desceu a nave da capela com as pernas tremendo e o couro cabeludo se arrepiando em sua cabeça com se mãos de fantasmas o estivessem tocando”. Chegando a seu quarto, correu à janela e, gemendo, “quase desfalecendo de mal-estar veio-lhe uma convulsão, de dentro; e, selvagemente apertando a fronte, vomitou profusamente”. “Deus poria Seu olhar sobre ele”. Confessar! Confessar! Submeter-se ao jugo divino, purificar seu corpo e salvar sua alma surgem como imperativos categóricos.
É nesse compasso que começa o próximo capítulo. Dedalus inaugura uma rotina de constantes jaculatórias e orações, e de uma conduta em que “cada pensamento, palavra e ação, cada instância de consciência devia ser feita de modo a vibrar radiantemente no céu”. Submete seu corpo ao rigor de uma disciplina inclemente, uma busca de neutralizar seus sentidos. Passa a caminhar sempre com o olhar fixado no chão; para mortificar sua audição, expõe-se a ruídos que lhe causam uma dolorosa irritação nervosa; submete seu olfato ao único fedor que lhe era insuportável, o de peixe podre; mortifica o paladar evitando o prazer dos sabores; o tato, mantendo longamente seu corpo imóvel em posições dolorosas.
Partimos, portanto, da constatação de que Joyce, ele, tem um corpo. O que colocamos aqui em tensão é como se manifesta sua relação com ele, através do personagem Stephen Dedalus, nesses dois momentos do Retrato... Separamos aqui, para a reflexão, dois fragmentos do ensino de Lacan.
O primeiro, de 1972, no Seminário 19, no qual ele afirma que, para Freud, “o que se produz no nível do corpo [suporte] tem a ver com o que se articula pelo discurso”, ele o faz referindo-se ao gozo corpo a corpo, pois “não é forçosamente um corpo [...] podendo ser vários corpos aprisionados, e até séries de corpos”.
O segundo, no Seminário 23, em que Lacan sustenta que “ter uma relação com o próprio corpo como estrangeiro é, certamente, uma possibilidade, expressada pelo fato de usarmos o verbo ter. Tem-se seu corpo, não se é ele em hipótese nenhuma”. E, detendo-se sobre a cena da surra, afirma que “dessa vez, [Stephen] não gozou, teve uma reação de repulsa”; o que indicaria, metaforicamente, tratar-se de “uma forma de Joyce deixar cair a relação com o corpo próprio”.
A esse corpo que Joyce tem e que deixa cair no capítulo 2, contrapõe-se, nas cenas do capítulo 4, um corpo que pareceria, a princípio, ser afetado pelo discurso; e que se lhe apresenta a modo de uma superfície sobre a qual ele procura agir. Seria uma tentativa de dar consistência ou contorno a esse corpo que antes se deixava cair e tombava como uma casca fina? Poderíamos pensar neste momento em um corpo petrificado pelos mandatos do discurso religioso? Ou seria, pelo contrário, um intento de Joyce/Stephen capturar seu corpo e introduzi-lo, forçosamente, num discurso do qual se encontra, de saída, exilado?
O mistério e o enigma
O escrito de Lacan segue o estilo joyceano. Assim como em Joyce, Lacan apreende as palavras que produzem eco no corpo, usando e abusando dos equívocos linguísticos e homofonias, que são avatares do significante. Talvez Lacan e Joyce tenham compartilhado de um saber sobre o que faz, na sua origem, o vivo do corpo, o mistério que condensa a fala e o corpo, o falasser. “O real é o mistério do corpo falante, é o mistério do inconsciente”[10] . Mas é possível desvendar o mistério do processo pelo qual o significante entra no corpo, o mistério da relação entre o simbólico e o corpo?
Vamos conversar com duas ideias de J.-A. Miller, que podem nos guiar para pensar o que, desse mistério do ser que fala, colocamos a trabalho em uma análise. Uma delas encontra-se no seu texto de orientação do Congresso de 2016 no Rio de Janeiro. Aí ele diz que “o mistério é o oposto do matema”[11]. A outra aparece em um adendo escrito por ele ao Seminário 23 de Lacan, na tradução feita para o português. Nesta, ele vai colocar do lado do matema, não o mistério do falasser, mas dois termos que estão em profunda conjunção um com o outro, o enigma e a enunciação. Importante lembrar que o matema, para Lacan, é um meio de transmissão. Como nas matemáticas, é bem-sucedido para uma transmissão integral do conhecimento. Para ele, não se chega a saber o que querem dizer, mas os matemas se transmitem e por isso são compatíveis com a psicanálise.
Assim, o matema, o enigma e a enunciação são termos que se colocam a trabalho para a psicanálise, quer dizer, é possível se arranjar com isso. Comecemos pela enunciação. Para Lacan, ela é uma cadeia significante que se implanta, como um parasita, a outra cadeia significante, aquela que enunciamos correntemente. Sua aparição ultrapassa o sujeito que a enuncia, como se fosse um outro que falasse através dele, seu mero instrumento. No entanto, essa intrusão é exatamente o marco de onde podemos afirmar que o sujeito está situado no seu dizer, onde está a causa de seu dizer. Quando chegamos nos últimos seminários de Lacan, vemos que toda a dimensão da linguagem se torna parasitária para o sujeito. As palavras, ele insiste, sempre serão, de certa forma, impostas pelo Outro, parasitando o sujeito. No Seminário 23, fazendo menção a Joyce, ele indaga: “Como é que todos nós não sentimos que as falas das quais dependemos são de algum modo impostas?”[12]. Esse ponto de injunção do dizer, parasitado pela palavra do Outro, é então o que permite situar os índices de uma enunciação.
Mais tarde, Lacan apresenta o matema da enunciação em correlação com o enunciado de um dizer (e), matema que se escreve: E(e), quer dizer, a enunciação depende do índice do enunciado (e). Ela nasce, na verdade, na fenda que se abre entre o dito e o dizer. Curiosamente, Lacan vai usar esse mesmo matema para grafar a fórmula geral do enigma. A mesma lógica da enunciação vale também para o enigma.
Se o significante marca o corpo, fazendo surgir um falasser, isso é um mistério, o mistério do corpo falante. A experiência dos efeitos de enunciação que surgem em uma análise, por meio das palavras “chistosas”, mostra que o enigma pode ser uma transformação desse mistério do falasser em significantes cifrados pelo equívoco, verdadeiros chistes.
Joyce é o escritor por excelência do equívoco e do enigma. Estes estão presentes com abundância em Ulysses, cuja própria estrutura, suas mudanças radicais de estilo ao longo do próprio romance, é em si mesma um grande enigma. Assim como em Joyce, Lacan com seu estilo também enigmático, evita que seu escrito seja capturado facilmente pelo enunciado.
Assim, sendo veiculado nas entrelinhas do texto, o enigma é uma enunciação, aquilo para o qual não se encontra o seu enunciado. Mantém o leitor, ou o ouvinte, em suspensão quanto à atribuição de um sentido. Como a enunciação, leva em conta o sujeito do desejo, a situação existencial do enunciador e o seu contexto, guardando uma relação muito íntima com o corpo. A enunciação surge articulada com algum efeito de enigma, alguma modalidade da fala que denuncia o momento da captura do significante no corpo. Não revela o seu mistério, mas denuncia o seu surgimento, no instante mesmo da fala. A potência da enunciação é quando ela se depara com o nó da não-relação sexual e com o mistério do falasser, quando consegue ser dita sem “embaçar o fulgor enigmático” do dizer.[13]
[1] Texto apresentado na Jornada dos Núcleos de Pesquisa do ICPOL e do CIEN-SC, "Discursos: ressonâncias", realizada nos dias 18 e 19 de outubro de 2024, tendo como convidada e comentadora Beatriz Udenio (EOL/AMP). Núcleo coordenado por Gustavo Ramos (EBP/AMP) com equipe de trabalho composta por Eneida Medeiros (EBP/AMP) e Gresiela Nunes da Rosa (EBP/AMP). Participantes do Núcleo: Ana Maria Alves de Souza, Andréa Tochetto, Angela Andreolli Schüssler, Cristiane Inês Bhering Kimura, Danielle Omine, Erasmo Benício Santos de Moraes Trindade, Francine Murara, Joel Lopes, Juan Galigniana, Mariana Dias, Rafaela Maester, Roberta Inácia Duarte, Rosângela de Faria Correia, Rossano Lopes Bastos e Priscila de Sá Santos.
[2] JOYCE, James. Ulysses. Trad. de Caetano Galindo. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. p. 76.
[3] Ibid., p. 84.
[4] Ibid., p. 84-85.
[5] Ibid., p. 385.
[6] LAURENT, Éric. O avesso da biopolítica. Uma escrita para o gozo. Trad. de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016. p. 122.
[7] Ibid., p. 122.
[8] Ibid., p. 124.
[9] JOYCE, op. cit., p. 105.
[10] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20: mais, ainda. Trad. de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. p. 178.
[11] MILLER, Jacques-Alain. O inconsciente e o corpo falante. In: Scilicet: O corpo falante - sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: EBP, 2016. p. 24.
[12] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23: o sinthoma. Trad. de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 92.
[13] MILLER, Jacques-Alain. Nota passo a passo. In: LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23: o sinthoma. Trad. de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 237.