Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança - CIEN/SC

A incrível história do Um sozinho que desapareceu cheio de Outros [1]

 Laboratório Protocolo Aberto[2]

 
Danielle Lemes. Esperando para cair na cabeça de alguém.


A psicanálise como uma ética que se ocupa da subjetividade, que acolhe cada sujeito com suas invenções e que testemunha os arranjos peculiares de cada Um a seu tempo e sua época diante do laço no social, assistiu, também, o surgimento e a decolagem de um significante de extrema recusa ao Outro que se tornou nome de muitos, dito por vários e escutado por poucos. O Autismo como causa e solução de um apagamento voraz.

A psicanálise de orientação lacaniana aponta hoje para o autismo como uma quarta estrutura, da qual sabemos, como as outras, que se funda antes de tudo na insondável decisão do ser. Apresenta-se por tamanha recusa ao Outro, que nos avisa de diversas maneiras sobre o sofrimento de viver imerso no real. A recusa do olhar, a não cessão da voz, a relação de borda que constroem com os objetos, assim como as repetições na dimensão da realidade denunciam a iteração do Um e pedem que em análise, numa transferência construída através da borda do objeto ou do interesse específico algo do Outro que possa chegar menos invasivo e fazer uma insígnia que talvez possa vir a deslizar e ser um significante.

A psicanálise está de acordo com o discurso da ciência no que toca a ideia de um espectro. Existem diferentes níveis de abertura para o outro, sendo apenas no caso a caso que descobrimos o quanto de uma constituição aconteceu e, se ainda não há sujeito ali, apostamos que possa surgir e lhe oferecemos a dignidade de uma presença esvaziada de demandas para que, em seu tempo, invente modos de apaziguar sua angústia. Mas deixemos dito aos analistas que esta é uma presença esvaziada de demanda, por vezes calculada, mas ainda assim é uma presença. Há trabalho a fazer.

Da clínica do circuito d’A Batalha do Autismo à prática entre vários de Dizer “sim” à criança autista, encontramos um trabalho significativamente importante com os pais e cuidadores de pessoas autistas. Uma das frentes desta aposta é o esforço da psicanálise em resgatar o saber dos pais, apostando no surgimento de uma narrativa que irá marcar o corpo da criança e a partir disso, algo do Outro fará linguagem e não rompimento.

Foi em um não lugar concebido aos pais, em uma sala de espera cheia de não saberes, que este Laboratório fez suas primeiras perguntas e se inscreveu. Leia-se 2019, uma Instituição de tratamento para autistas que não contava com equívocos, mirava nos métodos e nas abordagens corretivas, dando a eles esconderijo através dos significantes sociais das “eficácias científicas”. Neste cenário que romantizava a batalha do autismo[3], a angústia dos pais fez um barulho alto e balançou as estruturas firmes da narrativa médica. Frente a recusa das crianças em ceder a um Outro massificador e educador, a exasperação das famílias tomou o lugar, abrindo intervalo para as conversações. Foi através do diálogo entre as disciplinas, proposto pelo CIEN, que os discursos se afrouxaram e o nome deste laboratório se inscreveu, já provocado por uma inquietude de alguns participantes – em sua maioria profissionais atuantes nesta associação. Eles pareciam advertidos de que algo de um saber antecipado sobre o que é uma criança não haveria de funcionar com os sujeitos autistas que chegavam em algumas Instituições[4].

O Laboratório Protocolo Aberto, tem como ponto de pesquisa os autismos e os impasses com o laço social, a relação das famílias com o diagnóstico e com as instituições de tratamento, da mesma forma que estreitou a distância com a educação, afinal são nas escolas que também estão as crianças autistas, é nelas que a recusa ao discurso normativo e inclusivo aparece com vigor. Em mais de quatro anos de laboratório, muitas conversações aconteceram com pais, mães, professores e educadores, adultos ditos autistas e profissionais de instituições de tratamento, embasando nossas pesquisas teóricas e resultando em produções publicadas, vinhetas práticas e projetos de trabalho que podemos compartilhar em outro momento.

Mas foi em um dos encontros/reuniões entre os participantes do Laboratório, em momento de decantação e pesquisa sobre o tema, que na suspensão de alguns significantes pudemos, a posteriori, localizar que aconteceu ali uma conversação que nos trouxe uma questão importante. Abrimos causa para a verdadeira maquinaria estratégica de clínicas e planos de saúde que contribuem de forma mercadológica na compra e venda de produtos e tratamentos para autistas. Esse uso inédito de uma deficiência para sustentar a lógica capitalista parece dirigir sem freio o uso da infância como objeto de gozo do capitalismo/social[5].

Para tanto, nos servimos aqui de dois importantes documentos recentemente publicados. O primeiro deles, “Material Técnico – ‘A indústria do autismo no contexto brasileiro atual: contribuição ao debate’ é o primeiro levantamento de dados e informações apontando o autismo como objeto de debates e controvérsias no âmbito das políticas públicas brasileiras com frentes de discussão no âmbito das mudanças de critérios diagnósticos, modelos de intervenção, disseminação de projetos de leis com direcionamentos financeiros, assim como as obscenas ofertas de produtos em mercados privados para ‘consumo’ de autistas.[6]

O segundo documento parece nos convocar mais à cena. Um dossiê encaminhado à Ministra dos Direitos Humanos com o assunto: “Solicitação de Providências para Apuração de Violações de Direitos Humanos Relacionadas ao Regime Semi-Manicomial em Terapias para Pessoas Autistas no Brasil”. Nesse, o pedido é por uma fiscalização rígida em clínicas e instituições de tratamento que seguem e sustentam encaminhamentos médicos para a prática de terapias intensivas de quarenta horas semanais, sobretudo àquelas baseadas em métodos como a Análise do Comportamento Aplicada (ABA). A denúncia aponta que a manutenção de uma rotina com terapias excessivas, impõe uma exclusão social, e consequentemente impede a vivência de outras experiências importantes para um desenvolvimento saudável, se esta for então a problemática a ser corrigida. A prática que submete autistas a longas jornadas terapêuticas define uma forma moderna de regime manicomial, pois não considera as necessidades individuais de cada sujeito e trabalha com o forçamento e treinamento do comportamento em busca de uma adequação na norma social. O documento ainda levanta entrevistas com autistas que conseguem dizer do seu sofrimento diante de tal abordagem e relatos de familiares que testemunharam tamanha tentativa de domínio da subjetividade.

Mas, afinal, como isso toca o Laboratório? O que a psicanálise tem a ver com isso?

Arriscamos dizer que no caminho ao encontro da resposta está o CIEN. Afinal, o CIEN e seu fazer é, como diria Judith Miller, um passo para as invenções que inscrevem a psicanálise na nossa atualidade. Decerto, assim, analistas advertidos, conversando com as outras disciplinas e os outros saberes da ciência, poderão a partir do impasse, do corte e de outras ferramentas clínicas abrir espaço para a associação livre coletiva (que não é uma enunciação coletiva) e continuar apostando no que ela já nos sinalizava: “o CIEN está para instruir a psicanálise (...), educar as inteligências (...)”.[7]

Por fim, o desafio continua posto, pois, enquanto ocupamos um lugar junto à cidade, seus dispositivos de acolhimento, tratamento, considerando os fenômenos da cultura e do tempo, ainda nos desencontramos com o próprio discurso analítico. Mantenhamo-nos dentro da cena.


[1] Texto apresentado na Jornada dos Núcleos de Pesquisa do ICPOL e do CIEN-SC, "Discursos: ressonâncias", realizada nos dias 18 e 19 de outubro de 2024, tendo como convidada e comentadora Beatriz Udenio (EOL/AMP). Elaborado por Fernanda Segatto- Responsável pelo Laboratório Protocolo Aberto, CIEN/SC.

[2] Integrantes do Laboratório Protocolo Aberto: Andrea Junkes, Psicopedagoga. Fernanda Segatto, praticante da Psicanálise. Marcia Frassão, Psicanalista. Olivia da Rocha, fonoaudióloga. Naiara Benedicto, fonoaudióloga. Valesca Lopes, Psicanalista.

[3] LAURENT, E. A Batalha do Autismo: da clínica à política. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

[4] Escolas, famílias, clínicas, instituições de tratamento.

[5] VOLNOVICH, J. A criança e o louco no discurso psicanalítico. In: A Psicose na Criança. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993.

[6] Material Técnico “A Indústria do Autismo no contexto brasileiro atual: contribuições ao debate". Abril, 2024.

[7] MILLER, J. O que é CIEN. CIEN Digital n.2 Dez. 2007.