A experiência do dizer perante o suicídio: O CIEN-SC com jovens Guarani

Laboratório Afinidades - CIEN-SC[1]

 


Danielle Lemes. Sem título.


1.
Afinidades em formação
 

O Laboratório Afinidades se constituiu no final de 2022, ligado ao CIEN-SC, com o encontro entre pessoas desejosas por conversas sobre temáticas relacionadas a adolescências, juventudes e psicanálise lacaniana. Os significantes “adolescência” e “juventude” estão sempre em questão para o Laboratório, especialmente com vistas à superação de um discurso universalizante da psicologia do desenvolvimento, já que “a adolescência é uma construção”[2].

As conversações ocorrem quando instituições da região de Florianópolis/SC sinalizam um impasse que possibilita o trabalho. Sob a perspectiva de fazer existir o inconsciente, atuamos a partir da interdisciplinaridade e de diferentes vozes que compõem possibilidades de dizer. Como afirma Daniel Roy[3], se o discurso analítico nos traz algo novo frente aos outros discursos, o CIEN contribui para o intercâmbio com “alguns outros”.

2. Localizando o impasse

Iniciamos nossas conversações com a demanda de escuta de jovens em territórios Guarani na região metropolitana de Florianópolis a partir do impasse do suicídio de jovens indígenas. No final de 2022 e ao longo de 2023, profissionais da Educação e Saúde Indígena indicaram a ocorrência de relatos de ideações suicidas e de suicídios, especialmente de meninas. Tal impasse indicava a angústia frente à morte e muitas questões se abriram.

Segundo a Organização Mundial de Saúde, entre as idades de 15 a 29 anos, o suicídio é a segunda principal causa de morte do mundo. Enquanto a população brasileira geral possuía um índice de 6,4 mortes por 100 mil habitantes em 2020, a população indígena apresentou o número de 17,6 por 100 mil habitantes no mesmo período. As maiores comorbidades para o suicídio indígena são: desigualdade social, desemprego, sentimento de inutilidade e desesperança com o futuro[4]. Em Santa Catarina, ainda possuímos poucos dados sobre a questão.

O psicanalista Marcelo Veras[5], em seu recente trabalho sobre o suicídio, aborda a multifatorialidade da problemática, incluindo a importância dos elementos singulares de cada caso. O autor articula o conceito de necrosuicídio, apoiando-se no conceito de necropolítica de Achiles Mbembe[6], levando em conta dimensões sociais, históricas, políticas e culturais no agravamento da questão para determinados grupos sociais. Para o povo Guarani, por exemplo, o acesso à terra é um elemento material e simbólico fundamental na travessia da infância para a vida adulta. Uma questão que ouvimos com frequência foi: com tanta disputa pela terra, no sentido da violência histórica e colonial perpetrada contra os povos indígenas em nosso país, onde e como fazer essa travessia?

3. Detalhando as conversações

O trabalho do Laboratório compreendeu a escuta não apenas dos jovens, como também de profissionais de Educação e Saúde em duas Aldeias. Um dos principais pontos levantados ao longo das conversações foi a sensação de virulência do suicídio, como se fosse espalhado de Aldeia em Aldeia e também na sociedade não-indígena. Foi relatada, no geral, a sensação de que as palavras faltavam. Abriu-se aí uma questão: com quem os jovens poderiam falar sobre seus sofrimentos mais íntimos e singulares?

Nas conversações realizadas com os jovens, uma diferença se escancarou entre os meninos e as meninas. Realizamos alguns encontros com todos e outros separados por gênero. No caso dos meninos, houve uma maior possibilidade de dizer sobre o tabu do suicídio. Além disso, através da brincadeira, ironia e zombaria, os meninos falavam sobre suas dores e alegrias. O humor e a ironia são fundamentais para a psicanálise, como nos alerta Veras[7], já que são formas de fazer operar uma mudança subjetiva de passagem do trágico para o cômico.

No caso das meninas, as conversações foram mais regadas de longos silêncios. Privilegiar um espaço de conversação só de meninas possibilitou vir à tona os incômodos com o corpo, o feminino e questões com o laço social. Falou-se em sensações de sufocamento e das dificuldades que elas encontravam em seus cotidianos. O respeito do Laboratório ao silêncio delas, mesmo partindo da ideia de uma conversação, foi fundamental.

Como é possível pensar o enlace dos desejos singulares das e dos jovens com seus corpos e com a coletividade da cultura Guarani da qual fazem parte? O sentido de pertencimento é fundamental, como ressalta Veras[8], pois não se trata de descartar o discurso do grande Outro. Sabemos, em psicanálise, que é importante dispensar as garantias que esse discurso do Outro entrega, sendo possível fazer recurso a ele para uma reinvenção no laço social, sabendo que algo resta. As conversações do CIEN podem contribuir para tratarmos desses restos.

4. Discurso capitalista e seus contrapontos: O que faz viver?

Chamou a atenção do Laboratório, assim como em outros espaços em que adolescentes circulam, o uso intensivo de telefones celulares e um maior isolamento entre os jovens, especialmente nos intervalos das aulas e atividades. O tema se colocou como questão para os professores. Miller[9] aponta o uso de gadgets de comunicação (produtos do discurso capitalista) como um saber imediato que se tem “no bolso” e como um anexo corporal. Lacan[10], ao introduzir o discurso capitalista, afirma que esse discurso reduz o sujeito a consumidor e impossibilita o laço social.

Em uma das conversações finais e conjunta entre meninas e meninos, em contrapartida, ao isolamento e à mortificação, perguntamos sobre seus sonhos e o que os fazia viver. Essa pergunta foi uma aposta do Laboratório frente às questões levantadas nas conversações anteriores. As respostas foram surpreendentes no sentido de afirmarem, de início, uma descrença nos sonhos e na perspectiva de futuro.

Ao longo da conversação, outro lado da questão foi inserido: inúmeros e singulares traços de vida e de laços com os outros foram sendo afirmados, especialmente relacionados às amizades, às famílias e ao senso de comunidade. Da descrença dos sonhos à crença em um amanhã, pudemos vivenciar possibilidades de dizer dos jovens frente ao suicídio.

Dessas respostas, surgem mais perguntas: como fazer amigos? Como confiar em alguém? Perguntas que anunciam algo de novo que precisa ser reinventado.


[1] Texto apresentado na Jornada dos Núcleos de Pesquisa do ICPOL e do CIEN-SC, "Discursos: ressonâncias", realizada nos dias 18 e 19 de outubro de 2024, tendo como convidada e comentadora Beatriz Udenio (EOL/AMP). Integrantes: Maria Luiza Rovaris Cidade (Responsável) e Marina Risi (Responsável Adjunta). Ale Mujica Rodriguez, Bárbara Almeida da Silva, Giovanna Botini e Gracy Amandio Pedro.

[2] MILLER., J.-A. Em direção à adolescência: Intervenção de encerramento da 3ª Jornada do Instituto da Criança. 2015. Tradução: Cristina Vidigal e Bruna Albuquerque Revisão: Ana Lydia Santiago.

[3] ROY, D. Sonhos e fantasmas na criança. In: Rayuela- Publicação virtual da Nova Rede Cereda América, nº 10, nov. 2023. Disponível em: <https://revistarayuela.com/pt/010/template.php?file=notas/suenos-y-fantasmas-en-el-nino.html>.

[4] FAPESP. Taxa de suicídio entre indígenas supera em quase três vezes a da população geral. Revista Pesquisa FAPESP, São Paulo, 2023. Disponível em: <https://revistapesquisa.fapesp.br/taxa-de-suicidio-entre-indigenas-supera-em-quase-tres-vezes-a-da-populacao-geral/>.

UNIFESP. Estudos detalham perfil de casos de suicídio na adolescência no Brasil. Universidade Federal de São Paulo, 2019. Disponível em: <https://www.unifesp.br/boletins-anteriores/item/3803-estudos-detalham-perfil-de-casos-de-suicidio-na-adolescencia-no-brasil>.

[5] VERAS, Marcelo. A morte de si. São Paulo: Editora Bregantini, 2023.

[6] MBEMBE, A. Necropolítica: Biopoder, estado de exceção, política da morte. São Paulo: N-1 Edições, 2018.

[7] VERAS, Marcelo. A morte de si. São Paulo: Editora Bregantini, 2023.

[8] Idem.

[9] MILLER., J.-A. Em direção à adolescência: Intervenção de encerramento da 3ª Jornada do Instituto da Criança. 2015. Tradução: Cristina Vidigal e Bruna Albuquerque Revisão: Ana Lydia Santiago.

[10] LACAN, J. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.


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